Terça-feira, 29 de Novembro de 2011

O Futuro, segundo Scorsese

Chega um momento onde a obra escapa da mão do seu criador e torna-se objecto público, sujeito às mais admiráveis ou tristes interpretações. O autor, seguramente atontado, perde essa conexação com a sua própria criação e segue por um caminho, tantas vezes diametralmente oposto ao da imensa maioria de admiradores ou detractores. Todos temos a sensação de que as obras que mais admiramos são, de certa forma, também nossas. E todos nos arraigamos esse direito de opinar sobre algo que, realmente, é totalmente de outro.

Ler Martin Scorsese é sempre apaixonante. Afinal, tudo o que tenha a ver com Martin Scorsese é tão viciante como uma melodia sem fim de Miles Davis. O grande cineasta norte-americano dos anos 70, o simbolo perfeito da evolução mais cinéfila dos Movie Brats, apresentou ao mundo a sua obra mais radical. E mostrou-se orgulhoso disso.

Com Hugo o nova-iorquino sabia onde se metia? Talvez não, mas Scorsese sempre foi assim, cineasta de riscos e de poucas certezas. Foi assim quando decidiu fazer de Robert De Niro uma estrela quase de musical em New York, New York. Foi assim quando mergulhou no drama tibetano em Kundun. Ou quando decidiu trocar os gangs da Nova Iorque moderna pelos Gangs of New York dos seus primórdios. Scorsese arrisca e nem sempre petisca, mas gosta de experimentar, de provar, de sentir-se vivo. Ao contrário de outros cineastas que, à medida que envelhecem, vão fazendo sempre a mesma obra (às vezes até sempre com os mesmos rostos) de Marty há sempre que esperar o inesperado. Hugo entra nesse ritmo frenético depois de um regresso às origens com Shutter Island.

No universo scorsesiano a presença infantil é profundamente omissa e não é dificil imaginar que o homem que redesenhou o cinema de gangsters tenha tido pouco tempo para seguir uma estela que o seu amigo Steven Spielberg aproveitou sempre muito bem. Mas como Hugo não é, desde já, um filme infantil, mas sim profundamente, humano, a mutação temática é o que menos importa nesta dissertação. O método é outra coisa.

 

O 3D parece ter conquistado o rei de Nova Iorque.

Scorsese confessou-se apaixonado pelo sistema, reconheceu que desejaria filmar todos os projectos futuros em três dimensões e - hellás - chegou mesmo a reconhecer que gostaria de ter provado o sistema em alguns dos seus filmes mais emblemáticos, como Taxi Driver ou The Aviator. Depois de quatro anos em que o 3D tem sido vendido como a grande arme do cinema comercial para recuperar o dinheiro perdido com a pirataria online, o decrépito mercado de DVD e a profunda falta de ideias dos grandes estúdios - com sucessos consideráveis no campo da animação e acção - eis que surge um realizador de prestigio internacional, um autor reconhecido nos quatro cantos do planeta, a elogiar o novo modelo de filmagem como um passo lógico na evolução cinematográfica.

Martin não é tolo, aliás, dos cineastas contemporâneos, provavelmente ele é quem melhor conhece a origem do cinema e os passos que pautaram a sua evolução técnica e metodológica. O 3D para ele é um novo Som, um novo Cinemascope, nada mais. O realizador reconhece que os óculos tridimensionais - como sucedeu na época do drive-in - são um empecilho para os mais conservadores mas ao contrário do pensamento maioritário, o cineasta é capaz de ver algo de prático e útil na utilização das três dimensões em filmes dramáticos, melodramas ou comédias para além do que se vê até agora com um uso e sobreuso do cinema de acção de Hollywood da nova tecnologia, principalmente depois do sucesso de Avatar. Claro que, por muito reputado que seja Scorsese, não deixa de ser uma opinião muito particular. Outro nova-iorquino ilustre, um tal de Woody Allen, já confessou que pensa exactamente o oposto. O que surpreende na afirmação de Marty é o revisionismo da sua própria obra, a tal que todos admiramos e sentimos como nossa. Imaginar Taxi Driver, com a sua vertigem visual nessas noites de insónia de Travis Bickle, em três dimensões é tão provocador que deixa o mais vanguardista sem argumentos para defender-se. E no entanto o remake de uma obra própria, com uso de novas ferramentas, é algo tão comum como o próprio cinema. Entre todos os grandes, Alfred Hitchock, foi o que melhor soube pegar nos seus filmes "ingleses" e reaproveitar ideias, planos e sequências na sua, mais consensual, obra americana. O Cinemascope foi uma arma perfeita para reeditar The Man Who Knew Too Much e quanto de 39 Steps não encontramos no garrido e vertiginoso North by Northwest?

 

Claro que imaginar Sunrise com som e cor (para não falar três dimensões naquele trânsito asfixiante) é algo que não passa pela cabeça de uma maioria habituada a conservar as peças artisticas num reliqário, imutáveis à mudança do tempo. E isso que Abel Gance tentou refazer toda a sua obra quando se encontrou com o som apenas para descobrir que ninguém o iria financiar nesse empreendimento. E que Billy Wilder fez The Apartement em preto e branco e depois não soube contemplar sequer a ideia de Irma la Douce sem o intenso Cinemascope. Ou Ford, do seco preto e branco de Stagecoach ao profundamente emotivo e visual The Searchers, mudando o método mas nunca a essência da sua obra. Não surpreenderá ninguém que o 3D acabe por impor-se porque assim é o mercado, reciclável sempre que faz falta um dólar mais. E Scorsese, como sobrevivente que é, sente já essa necessidade a adaptar-se ao futuro, a essa vertigem voraz de vida que sempre o encantou. Eastwood, pelo contrário, seguramente pensará o oposto e durante algum tempo (muito esperamos) o passado e o futuro conviverão, como sucedeu entre 1926 e 1932, como ocorreu entre finais dos anos 40 e o principio da década de 60. É dificil imaginar um Bickle tridimensional mas para muitos no futuro um futuro personagem da mesma dimensão na galeria scorsesiana criado propositadamente para o 3D será sempre um ser a quem as duas dimensões ficarão, forçosamente, pequenas...


Autor Miguel Lourenço Pereira às 10:41
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Segunda-feira, 17 de Outubro de 2011

O Decameron de Woody

Em 1976 o então jovem promissor Woody Allen estava prestes a transformar-se no autor por excelência da comédia intelectual que começava a ganhar sérios adeptos nos bairros mais progressistas de Nova Iorque. Atrás de si vinha já uma filmografia curiosa, repleta de detalhes que começavam a mostrar um verdadeiro sentido de genialidade. Mas foi nesse Outono que na cabeça de Woody se começou a desenhar a obra que iria, definitivamente, marcar um antes e um depois na sua filmografia: Anhedonia.

Claro que ninguém conhece este curioso filme com titulo de medicamento para patologias mentais (segundo a wikipédia é um termo psicológico para descrever a incapacidade de ter prazer em alegrias quotidianas) porque semanas antes de apresentar o filme ao público, a productora e o cineasta chegaram à conclusão que era preciso encontrar outro chamariz. Optaram pelo nome da personagem feminina protagonizada por Diane Keaton, eixo central dos delirios, já habituais, de um Alvy Allen que se inspirou em Diane, ela Hall na realidade antes que Keaton, para dar corpo e alma à sua obra. O filme acabou por se tornar num icone progressista à americana, venceu os únicos Óscares que Woody tem guardados junto às caixas de sapatos do seu armário, e demonstrou como o poder do marketing pode com tudo, mesmo com a ousadia.

Talvez Allen não imaginasse que 35 anos depois tivesse de passar, uma vez mais, pelo mesmo processo de reconstrução criativa que o levou de uma patologia a outra, numa série esquizofrénica de obras-maestras que o redefiniram como um dos cineastas norte-americanos mais globais da história moderna. Foi preciso viajar à Europa, a sua casa espiritual desde há muito, para voltar a ter de reinventar-se antes de aterrar nas salas de cinema. Ao contrário do pecado original, confuso até para os mais intelectuais do Village por onde pululava, o problema que Woody encontra com o seu novo filme é um reflexo da profunda ignorância cultural que hoje é uma realidade indismentível até na própria Europa. O Velho Continente sempre teve esse preconceito - de certa forma aceite sem resmungar pelos próprios americanos - de que era a biblioteca de Alexandria dos dias modernos, a continente onde a cultura e o conhecimento, como os cogumelos, crescia com uma facilidade espantosa face à barbárie das pradarias do outro lado do Atlântico. Ora essa Europa utópica, que nunca existiu, é agora uma Europa orfã, entre outras coisas, de conhecimento. De cultura. Uma sociedade entregue ao consumo imediato, ao estado social grátis e, sobretudo, à sabedoria de bolso, que é incapaz de analisar e entender um titulo mais complexo do que aquele que venha com parte 1, 2 e três. 

Allen não esperava isso dos seus admirados europeus. Quão enganado andava.

 

O seu próximo filme, uma homenagem felliniana, o seu grande mentor temporal, transformava Roma na sua nova Londres, Barcelona ou Paris.

Uma cidade europeia cosmopolita, repleta de vida social e de icones culturais. Uma cidade a ferver com o amor à arte, à cultura e à sabedoria milenar. Uma cidade que o iria entender como poucos, ele também um simples judeu amante de jazz e nomes pretéritos, mas que, feitas as contas, vive num mundo distante do seu.

The Bop Decameron era o titulo de trabalho do seu projecto de Outono (como Annie Hall o foi), um filme onde dois casais, um americano e outro italiano, deambulam pela Cittá Eterna sem nunca se cruzarem mas vivendo episódios similares. Um filme com um elenco de estrelas, como é hábito, onde Penelope Cruz se transforma em "Mamma Roma" de busto proeminente a la Loren, e em que há até espaço para o mais culto e eclético dos artistas europeus, Roberto Benigni, aliar-se ao seu alter-ego americano nesta história de cineastas cultos e esquizofrénicos.

Mas nem a presença do grande e imenso poeta das esquerdas italianas impediram Allen de se desfazer da sua reminiscência a Bocaccio e o seu mitico Decameron, já adaptado ao cinema por Pasolini nos anos 70. Allen viu o filme e ficou impactado com a crueza da obra do cineasta italiano e quando soube que o seu próximo projecto seria em Itália a ideia de homenagear a Pasolini (mais do que a Bocaccio) ganhou forma. Mas à medida que as filmagens iam decorrendo a productora e o cineasta começaram a descobrir uma dura realidade: ninguém sabia sequer o que Decameron era.

O nivel de ignorância cultural na Itália de Berlusconi é proporcional ao tamanho dos decotes das apresentadores de televisão, aos processos arquivados contra o omnipresente primeiro-ministro e, é preciso dizê-lo, à qualidade do último trabalho do nova-iorquino, o já inesquecível e tão recente Midnigh in Paris. Incrédulo, Woody parecia não acreditar quando as pessoas que contactava na indústria cinematográfica italiana (e os seus distribuidores europeus que lhe permitiram uma segunda juventude) não só desconheciam os Decameron originais (a obra escrita e a obra filmada) como os que sabiam de que se tratava o filme pensavam que Bop seria apenas uma versão actualizada do livro erótico de Bocaccio (algo tão insuspeito num homem que fez da masturbação a sua actividade sexual mais reconhecida) e não um titulo de livre inspiração e homenagem. Onde estava a parte 1, 2 e 3 pareciam pensar?

 

Como o cinema é uma arte mas também uma indústria que necessita tornar-se rentável a Allen foi colocado o mesmo problema daquele Outono de 76. E acabou por mudar o titulo de trabalho para Nero Fiddled, um nome que invoca outro lado de Roma (mais destructivo podemos supor) e menos proclive a confusões que não seriam reais se a Europa ainda fosse aquilo que nunca foi mas sempre tentou parecer que era.  Depois de um filme a transbordar de conhecimento e cultura como foi a sua última aventura parisina, ninguém espera que o cineasta repita a dose em versão italiana, por muito tentado que seja a fazê-lo. O público, mesmo o dele, não aguentaria duas doses consecutivas de entretenimento cultural num mundo onde o entretenimento se tornou o pão e o vinho e o cultural o guardanapo a que se limpa a boca. A ignorância nas salas de aula, nos programas televisivos, nas tertúlias cibernéticas (as outras parecem cada vez mais utopias dentro da utopia) é de tal forma gritante para as gerações de hoje que o estranho é saber de quem e o que é Decameron e não o contrário. O conhecimento tornou-se um peso, um karma social face à estupidificação da imensa maioria, daqueles que trocam os clássicos pelo novo Twilight, daqueles que deram razões a Lucas e Spielberg e à sua cultura de blockbuster e que hoje seriam incapazes de identificar em Annie Hall aquele homem com quem Alvy falava e que, de certa forma, previu tudo isto. Um tal de Marshall McLuhan.


Autor Miguel Lourenço Pereira às 09:57
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Terça-feira, 16 de Agosto de 2011

O ciclo repetitivo de Egoyan

A linguagem hibrida e monótona da filmografia de Atom Egoyan ajuda a antecipar, em muito, os seus twists finais. Quando um realizador não logra criar um elemento de tensão e expectativa, deixando demasiadas peças do puzzle por explicar, tornam-se inevitáveis os bocejos e olhares de desespero quando arrancam os créditos finais. Chloe e Exotica, dois filmes tão similarmente familiares da sua filmografia, caem nessa condição de querer ser mais do que realmente são. Como presentes caros, mas sem real valor, são apresentados com pompa e circunstância mas, tanto um como outro, acabam completamente esvaziados de personalidade.

O plano final de Chloe sobra. Como muitas das sequências do filme que o cineasta arménio decidiu incluir neste particular remake do original francês Nathalie. Se na versão original o ritmo era muito mais pausado e sério - e talvez por isso, menos impositivo - a forma como Egoyan conduz o final do seu mais recente filme é um espelho fiel da sua linguagem cinematográfica. Nada de novo.

Egoyan é capaz de obras interessantes e Ararat e The Sweet Hereafter são prova disso. Mas também faz parte desse grupo de autores (a lista é infindável e vai de van Sant a Jarmush) que dá a sensação de ter-se mais em conta do que seria possível imaginar. Quando um cineasta decide os tempos da narrativa decide também o ritmo de percepção do espectador. Egoyan, como tantos outros, esquece-se do espectador e filma para si, com os seus tempos. E perde-se numa teia de enganos em que o próprio autor acaba perdido.

Deslindrar o que está por detrás de Chloe é mais fácil do que se possa imaginar e nem é preciso ver a versão original. Afinal, o guião é de tal forma linear e supérfulo que os twists que vão marcando os tempos se transformam em pesarosos sinais de desalento. O ritmo sôfrego e desconcertante não ajuda a aquecer o público e a chama original de provocação rapidamente cai em clichés. A estas alturas Egoyan deveria saber que a nudez, por si só, já não é suficiente para manter o público alerta. Nem mesmo se se trata de uma rising star feminina que tão bem cai no goto do público adolescente mas que ainda não é capaz de demonstrar uma profundidade artística suficiente para ombrear com os registos de dois nomes como Julianne Moore e Liam Neeson. Mas esse ar angustiado e desconcertado de Chloe não é novo. Dezasseis anos depois o cineasta comete os mesmos falhos que transformaram Exotica, o filme que o lançou para a ribalta, num desses casos de amor ódio para tantos cinéfilos.

 

Em Exótica também havia pretensões, twists, subplots, surpresas de última hora e uma fortíssima conotação sexual.

Os mesmos argumentos, as mesmas áreas, os mesmos enganos. No thriller protagonizado por Mia Kirshner (então uma versão perfeitamente plausível de Amanda Seyfried alternativa dos anos 90) e Bruce Greenwood também havia um homem de meia idade e uma quase adolescente. Também havia esse clima de hermetismo e claustrofobia que só os espaços fechados são capazes de proporcionar. Não era um quarto de hotel mas sim uma pista de dança, de strip. O strip de Kirschner seria um prelúdio do de Seyfried? Muito provavelmente.

Chloe não é uma ideia original como foi Exotica mas move-se nos mesmos becos escuros. A surpresa final de Exotica não difere da de Chloe porque é igual de expectável enquanto carece do mesmo vazio de lógica que deixa o espectador a montar peças de um puzzle que não existem. Egoyan sorri na sua complacência consigo mesmo, tantos como ele fazem o mesmo, mas é incapaz de entender que um filme, como um livro, só termina quando é visionado pelo olhar alheio. Ao fechar-se no seu mundo de faz de conta, no seu mundo de frustrações e enigmas, Egoyan faz de duas premissas bastante interessantes dois filmes aborrecidos e fraudulentos. Esse engano consciente do cineasta é, por si só, o pior dos seus crimes. Quando ambos os filmes - com década e meia pelo meio - chegam ao fim, a sensação é exactamente a mesma, a descrença repete-se e o rótulo de flop faz todo o sentido. Porque, como acontece demasiadas vezes, ambos os filmes partem da premissa certa para chegar à conclusão errada. Ambos usam a isca certa para pescar no mar errado. O público de Egoyan não é o público de Mamma Mia! para ficar satisfeito com o corpo nu de Seyfried quando mais despido está o esqueleto de uma história macabra de enganos que parte da premissa correcta de que o mundo conjugal assenta, tantas vezes, numa pirâmide de mentiras, para terminar na sofreguidão de um vulto inexpressivo e um pente sem passado.

 

Entre Exotica e Chloe o cineasta radicado no Canadá fez Where the Truth Lies. Um filme que resume tudo o que de mau têm estes dois filmes e que reforça ainda mais a ideia deste artigo. Mas se essa espécie de projecto de filme noir ao menos assumia desde o minuto um que era uma fraude humilde de um género grandioso na sua contenção, tanto Chloe como Exotica presumem de um ar desafiante de superioridade moral que se desfaz à primeira brisa de vento.

 

 

O Cinema agradece a paciência dos seus leitores depois destas semanas de férias. A partir de hoje o blog retoma o seu ritmo habitual de publicação com novidades no horizonte.

 


Autor Miguel Lourenço Pereira às 14:37
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Sábado, 21 de Maio de 2011

A esquizofrenia de Tyler Durden

David Fincher cimentou as bases da sua carreira com Se7en. Mas o estatuto de culto deve-o, sobretudo, a Fight Club. A adaptação da obra homónima de Chuck Palahniuk não é tão completa cinematograficamente mas a mensagem de rebelião social tocou verdadeiramente as bases do meio underground que reconheceu a coragem do cineasta em mergulhar no olhar perdido e esquizofrénico de um tal Tyler Durden.

 

Fight Club agarra o espectador pelo pescoço e mantem-no no ar durante duas horas.

Quando o deixa cair, mais por fastio do que por falta de forças, a queda é profundamente dolorosa. Masoquisticamente, queremos mais. Como os membros do Fight Club, cair desta forma transforma-se numa liberação individual. Um arrancar de espartilhos, um grito no silêncio congénito e diário da sociedade urbana contemporânea. O desafio de Tyler Durden a si mesmo, a todos, é o desafio de como romper uma rotina social que esconde os verdadeiros instintos humanos, molda-os e encaixota-os sem qualquer piedade. Num universo onde a vida vale pouco, a morte é magnificada e as obrigações sociais se tornam mais importantes do que os valores pessoais, Fight Club não oferece a outra face. Pelo contrário, toma a iniciativa de dar o primeiro golpe.

Fincher entendeu-o melhor do que ninguém. Porque ele também sempre caminho do outro lado, porque ele sempre também quis colocar em cheque esses valores sociais que transformaram o mundo contemporâneo num longo e interminável videojogo. Se em The Game havia um profundo masoquismo humano contra o fausto e a opulência, contra o dinheiro e o comodismo social, em Se7en eram os próprios valores humanos que eram colocados em cheque, levando a um limbo nunca visto os conceitos de “certo” e “errado”.

 

Para Fight Club funcionar cinematograficamente era necessário ter um cineasta com a sensibilidade de Fincher.

Mas também um leque de actores que fosse, eles mesmos, o desafio soberano ao status quo social. E quem melhor para representar os dois lados da moeda, os dois lados do espelho, que o vulgar Norton e o divino Pitt. Nada poderia ser mais distante do que o olhar contido e reflexivo de Edward Norton, esse imenso actor que em 1999 atingiu o seu pico demasiado cedo (foi o ano também de American History X) e o corpo desenhado com o pincel de Miguel Angelo e o riso desafiante da suprema auto-confiança de Brad Pitt. Houve poucos cineastas que acreditaram tanto num actor como David Fincher acreditou em Brad Pitt. Lançou-o, definitivamente, com Se7en. Confirmou-o, absolutamente, com Fight Club quando o estúdio tinha todas as fichas em cima do nome de Russell Crowe. Aos 36 anos o actor que Hollywood nunca soube encasilhar – e portanto, nunca se incomodou a recompensar – ofereceu o seu papel mais intenso e cru, o papel mais “pittiano” da sua excelente filmografia. Ele não é o esquizofrénico Tyler Durden mas é o espelho em que qualquer esquizofrénico gostaria de ver-se reflectido. É o desafio ao mundo da mesma forma que Norton, o homem que não pode dormir sem entender o sofrimento alheio, é o desafiado que eternamente se desvia do golpe. Entre os dois – porque o filme, apesar do resto, (e nesse resto há a melhor Bonham-Carter desde The Wings of the Dove),  é dos dois e só dos dois – o sistema é colocado em cheque. Não se trata da revolta dos necessitados, dos esfomeados, dos pobres. É a revolta dos que já estão a viver o sistema por dentro, que o conhecem à perfeição e que, portanto, entendem as suas falhas, e que têm outro tipo de fome. É a revolta da rejeição, a esquizofrenia de um mundo de corporações, marcas e anuncios.

 

Fincher explicou-o perfeitamente quando resumiu o filme ao dilema do caçador moderno, aquilo para que geneticamente fomos preparados durante séculos, que hoje se encontra com tudo servido em bandeja e não sabe onde canalizar as suas necessidades mais básicas e primárias. Mas Fight Club vai mais além disso, mais além desse regresso às origens.

Vai, também, ao próprio conflito do eu. Da forma como o Homem se vê a si mesmo no mundo, cercado por esteriótipos e conceitos vendidos e reciclados vezes sem conta. Norton vê em Pitt tudo aquilo que os homens vêm no espelho quando se querem sentir bem. A confiança, a atitude, o corpo, a coragem, o espirito de iniciativa, tudo aquilo que os gregos já enunciavam, há milhares de anos, como a base de qualquer icone humano. O Homem de hoje (e a mulher, até em maior medida) é forçado a olhar para o espelho e negar a realidade, a procurar o escape nessa imagem ficticia e esquizofrénica de rebelião interna. Para se manter em ordem, na linha, na cadeia de montagem, sem reclamar, sem rebelar-se. É nesse aspecto que Fight Club, com todos os seus torsos nus, toda a sua violência, todo o seu sexo, desafia os status quo. O Homem não quer ser só um caçador. Quer ser um Deus.

 

Naturalmente Fight Club encontrou um grupo de espectadores céptico e incapaz de assimilar todo o processo desconstructivo e lunático que pauta o ritmo do filme. Não poderia ser de outra forma, senão estariamos diante de um processo falhado. Curiosamente foi a sociedade de consumo, através do mercado de dvds, que contribuiu para o estatuto icónico de um filme tão corajoso que só podia ter sido permitido na América pré-11 de Setembro. No fim, se é que há realmente um fim naquele plano delirante e sociopático, a esquizofrenia de Tyler Durden transforma-se também na esquizofrenia do Homem moderno, da sociedade contemporânea. O delirio do espelho partido é apenas o reflexo de uma alma desfeita em mil estilhaços, sem passado e sem futuro e com um presente que lhe vende uma falsa imortalidade.


Autor Miguel Lourenço Pereira às 16:45
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Quarta-feira, 27 de Abril de 2011

Huston, a sol e sombra

Foi um mercenário para os autores e um outsider para os moguls do dinheiro. Inspirado na figura de Hemingway, talvez o seu grande equivalente literário, John Huston ajudou a definir o cinema norte-americano do pós-guerra e, sem o saber, abriu portas para uma nova escola criativa que daria os seus frutos, 20 anos depois. Numa filmografia entre sol e sombra, Huston foi, de certa forma, o espelho perdido da América.

 

 

 

Quando Clint Eastwood reencarnou o alter-ego criado à volta da figura de Huston no maravilhoso White Hunter, Black Heart, deixou a nu todos os fantasmas que rodeavam a figura do mítico cineasta, falecido pouco tempo antes. Mesmo depois de morto a sua imagem continua a reflectir o espírito de uma época onde a arte e o mercado lutavam a punho nu. Sem concessões.

Huston foi dos primeiros autores a entender Hollywood. E não confundamos conceitos. Capra, Wyller, Stevens, Hawks, Ford, McCarey eram maestros profundamente dotados mas eram, todos eles, filhos do sistema de estúdios. Tinham nascido com eles e contribuído para o seu crescimento. Todos faziam concessões para sobreviver e assumiam-no com a normalidade de um "Im John Ford and i make westerns". Tão simples como isso. Do outro lado estavam os autores marginalizados, os heróis do cinema europeu que ficaram sem espaço e os nomes americanos atirados para a Serie B, que para os estúdios funcionava como uma segunda divisão mas que para eles era uma perfeita prova de ensaio. E uma escola que faria escola. Mas aí estavam eles, longe do público, no seu guetto particular. E no meio estava ele, como Hemingway na literatura, Huston no cinema.

A sua aparição foi surpreendente, a sua consolidação algo natural. Mas a reacção do meio, turva.

Filho de um actor, dotado de um profundo amor próprio e um espírito de iniciativa típico dos netos da conquista do Oeste, Huston passeou pelo Velho Continente, leu muito, pintou, escreveu guiões de sucesso e depois decidiu que queria ser realizador. The Maltese Falcon foi uma prenda caída dos céus que soube agarrar com as duas mãos. Um filme de Serie B, um guião de um clássico do género noir e um elenco sem grandes nomes para o público parecia inofensivo suficiente. Huston transformou a mediania em excelência, transpirou o espirito de Hammett e ajudou a Humphrey Bogart (que conheceu nas filmagens de High Sierra, o seu último sucesso como guionista) a dar o salto final que precisava começando uma larga e frutuosa parceria. Surpreendida pelo êxito Hollywood ficou sem saber o que fazer com um realizador que gostava também de ser bon-vivant, artística e profeta do romantismo criativo.

 

Metade dos membros da Meca do Cinema queriam que falhasse. A outra metade achou-lhe piada desde o inicio.

Flirteou com actrizes, embebedou-se com actores e humilhou em público demasiados directivos para passar desapercebido. Mas ganhou o respeito do meio. Por isso, depois de Treasure of Sierra Madre, talvez o seu melhor filme, a Academia deu-lhe o Óscar de Melhor Realizador à frente de vários nomes já consagrados. E rendeu-se à evidência do seu talento depois de Huston assinar um cruel e seco retrato da ganância e soberba humana como Hollywood não estava habituada a ver. O sucesso junto da indústria, que ele tanto desprezava, valeu-lhe então o despeito dos artistas, que ele tanto admirava. Os franceses ignoraram-no e preferiram os mais polémicos Peckinpah, Ray e Fuller. Os ingleses não gostavam da sua atitude excessiva e mesmo nos Estados Unidos o seu espírito afastava-se da nova vaga dos actores do Método. Ele ainda era da escola dos directores-ditadores e isso encaixava mais no preconceito com o star-system do que na nova seiva de produtores, realizadores e actores.

Talvez por isso Key Largo, Asphalt Jungle e The African Queen - três filmes maravilhosos, belos, crus e com um sentido de humor refinado - tenham passado ao lado de todas as listas de todos os críticos e do aplauso do grande público. Em ambos se vê a sua mão, em dois deles volta a funcionar a parceria com Bogart e no computo da sua filmografia de então fica clara a sua atitude despreocupada e cínica com o Mundo. Rodar em África o épico bélico com tons de obra teatral para realizar o sonho de comandar um safari não enquadrava bem no espírito dos críticos dos Cahiers (frívolo, diziam) nem nos empresários americanos que o tinham por excêntrico.

E no entanto não o era. Abandonou os States em protesto com a caça às bruxas e começou com Asphalt Jungle a tendência do cinema noir de tornar os criminosos em heróis marginalizados pela sociedade capitalista. Abriu a escola e não usufrui dos louros rapidamente entregues a outros grandes em forja. Essa falta de reconhecimento amargurou para sempre a sua egolatria existência e depois do fracasso de filmes puramente comerciais - apesar de inspiração artística de base - como Moby Dick e Moulin Rouge - entrou numa espiral decadente que só The Misfits - e no fundo, ele que abriu e fechou a carreira de Marylin Monroe, também o era - soube paliar. Mas o cinema - e a sua base - tinham mudado de tal forma que a partir dos anos 60 se dedicou a cultivar a imagem de cretino consumado e passou à interpretação logrando o clímax no policial Chinatown, talvez lembrança dos seus primeiros dias.

 

Huston manteve-se fiel a si próprio (basta ver The Night of the Iguana, The Man Who Would Be King e o seu opus, The Dead, para entendê-lo) até ao fim. Excluiu-se de Hollywood mas soube utilizar a sua popularidade em proveito próprio, saltando de projectos pessoais (Freud: The Secret Passion) a filmes puramente comerciais (Escape to Victory). Viveu à margem de Hollywood mas não soube nunca passar verdadeiramente sem o caos de Los Angeles. Viu passar gerações de cineastas, escolas e movimentos, e manteve-se imutado. O seu penúltimo filme, Prizzis Honour, teve o mesmo impacto e revelou a mesma frescura que o primeiro. E esse espírito definiu-o eternamente. Fora do sistema, dentro dele, fora dos autores, com eles, John Huston foi sempre ele mesmo. E isso acabou por parecer-lhe sempre suficiente.


Autor Miguel Lourenço Pereira às 14:36
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Quarta-feira, 13 de Abril de 2011

Relembrando Lumet, o poeta da América social

Nunca gostou do establishment. O establishment nunca gostou dele. Mas ambos foram forçados a um braço de ferro que durou 50 anos e ajudou a redefinir a estrutura do cinema americano da segunda metade do século passado. Sidney Lumet abriu uma escola e nunca recolheu os louros. Transformou o cinema americano, relançou o conceito de televisão e transformou-se numa bóia de salvação para muitos actores. E nem é preciso olhar para os cinquenta anos de carreira para o comprovar. Todo o Lumet do futuro estava no passado. No inicio. Em 12 Angry Men definiu a pincelada a sua carreira. E nunca saiu da sua linha...

 

 

 

Lumet era um homem que gostava de actores. E de histórias. Com isso bastou-lhe para transformar-se num grande cineasta.

Era um arquitecto do espaço, sabia colocar a camara no local ideal para captar, mais do que uma cena, uma sensação. Não há nada que funcione melhor no cinema lumetiano do que as suas sensações. O desespero de Dog Day Afternoon. A franqueza de The Veredict. A desilusão em Network. A claustrofobia de 12 Angry Men. O seu primeiro filme chegou às salas em 1957. Foi rodado, como seria nele habitual, em tempo recorde e com um elenco broadwayiano. Por onde passou os seus principios, de olho no mundo da televisão. Tinha uma estrela para chamar a audiência, o imenso Henry Fonda. Mas para ele o protagonista não o era se não houvesse algo mais. Profundidade humana em quem o rodeia. Por isso os 12 homens em fúria do titulo tornaram-se muito mais importantes como colectivo, do que o único homem que acreditava na inocência do réu.

A forma como Lumet escolhe esta peça de sucesso não é um acaso. Ele também acreditava num tipo de cinema que começava a estar condenado pela megalomonia que rapidamente destruiria a velha Hollywood. Um cinema seco, honesto e directo. Lee J. Cobb, Ed Begley, Martin Balsam transportavam essa rudeza de um autor que olhou para o teatro como fervorosa admiração. Passou aí muitos dos seus anos e madurou. Quando voltou ao cinema, com a sua natural sinceridade, transformou Katherine Hepburn, essa rainha amaldiçaoda, numa torturada dona de casa em Long Day´s Journey Into Night. Um dos seus melhores e mais esquecidos filmes. A forma como resgatou Fonda e Hepburn, reis dos anos 30, do ocaso tornou-o respeitado por esse nucleo que iria comandar a Nova Hollywood. Os actores respeitavam-no muito por encima dos cineastas da nova vaga. Viam-no com esse afastamento necessário para entender que Lumet seguia a sua própria sombra.

 

A década de 70 marcou esse volte-face emocional do cinema americano e Lumet, sem o mediatismo dos Movie Brats, foi como um profeta na penumbra. Assinou alguns dos mais marcantes - não melhores, marcantes - filmes da década com um cinismo e crueldade a que os americanos estavam pouco habituados. Dog Day Afternoon derrubou, definitivamente, os preconceitos com a homossexualidade graças a um imenso Al Pacino transformado nesse icone gay perdido na sua própria guerra interior. O tom fresco e desesperado do filme transformou-se em algo mais sombrio e deprimente quando Lumet decidiu analisar metodicamente um mundo que conhecia bem, o da televisão, em Network. A forma como conjurou esse triângulo de almas perdidas na luta de audiências, nesse "I mad as hell and I can´t take it anymore" que Peter Finch grita do fundo das entranhas, foi como um soco no estomago para uma geração que começava a perder o norte (Copolla, Scorsese, Cimino e Friedkin caminhavam já para a sua destruição) e que se tinha deixado apanhar nessa escalada moral. E depois, quando parecia que o seu génio tinha passado de moda, quando os actores que o consideravam como um deles o tinham progressivamente abandonado (e a si mesmos também), chegou The Veredict a lembrar os principios. Outro tribunal, outra alma em tortura constante, desta vez consigo mesma, o filme que resgatou Paul Newman de uma década para esquecer (como Holden, como Fonda, como Hepburn...) devolveu esse realismo cruel e esse espirito de cinema social que os Lucas e Spielbergs, que tinham ganho a batalha por Hollywood, tentavam tapar com os seus efeitos especiais. Lumet voltou a ser o que sempre foi, um cineasta marginado (nunca venceu um prémio de prestigio, nunca o reclamou) e com uma profunda mentalidade rooseveltiana acente na luta entre o certo e o errado. A honestidade de Serpico, o desespero do polémico The Pawnbroker (o primeiro filme americano a exibir um seio nu), a crueza de Before the Devil Knows Your Dead, o seu último trabalho, permanecem na memória colectiva. Mas tudo - o sentimento de culpa, o desejo de fazer o bem, a capacidade de persuasão do contrário, o espirito colectivo, o respeito pelos valores americanos e a sua devoção por Nova Iorque - tudo está nesse 12 Angry Men, talvez, e ainda hoje, o seu filme mais certeiro.

 

 

 

Sidney Lumet foi diferente porque nunca procurou seguir a corrente. De certa forma a moda ditou-a ele com a sua aproximação ao modelo capriano e rosselliano que Hollywood tinha trocado pelo fausto e pelos números. Foi um porto de abrigo para actores, argumentistas, criticos e cinéfilos que encontravam sempre nos seus filmes um porto de abrigo. Conheceu o cinema americano a caminho da condenação, mas como em 12 Angry Men conseguiu absolveu-o. E passou os 50 anos seguintes a explicar porquê...


Autor Miguel Lourenço Pereira às 09:28
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Terça-feira, 15 de Março de 2011

A subtil delicadeza lubitschiana

Foi Billy Wilder quem disse de Ernst Lubitsch que os seus filmes tinham sempre portas que se abriam, portas que se fechavam e portas que embatiam com estrondo. Essa analogia da passagem de testemunho, desse caminho inevitável que o simbolismo das portas apresenta, espelha também a subtileza que sempre pautou a obra daquele que foi um dos cineastas mais importantes da primeira geração de ouro do cinema. Wilder conhecia-o bem, foi o seu argumentista durante anos, e o "lubitsch touch", esse toque de súbtil genialidade tornou-se, inevitavelmente, o seu santo e senha. Poucos filmes do cineasta alemão encaixam tão bem nessa troca de simbolismos, nessa calma tempestade interna como The Shop Around the Corner.

 

 

 

O mundo descubriu James Stewart com Frank Capra. Mas depois de dois filmes únicos (que se confirmariam no terceiro e mais fascinante de todos eles, It´s a Wonderful Life), havia um lado cómico e subtil do grande actor do cinema americano que ainda não tinha sido devidamente explorado. Até chegar Lubitsch. O realizador germânico tinha sido - com von Stenberg - o grande arquitecto do cinema alemão na sua transição entre o mudo e o sonoro, e em Hollywood dedicou-se a fazer o que mais ninguém sabia. Comédias ácidas, tocantes e profundamente criticas da sociedade mercantil que já tinha tomado definitivamente de assalto a sua adoptiva América. Trouxe essa mentalidade burguesia e comercial do centro da Europa e americanizou-a. Mas sem cortar com as origens. Alguns dos seus grandes filmes foram verdadeiras pastorais americanas (Heavan can Wait, o último talvez), mas sempre que podia, voltava à suas origens.

Em 1940 ambos - Stewart e Lubitsch - vinham de um grande ano. Jimmy tinha chegada ao mais alto com o seu inesquecivel Jefferson Smith em Mr Smith Goes to Washington. Perdeu o Óscar para Robert Donat, segundo se disse, porque Hollywood quis vetar um filme tão politicamente pronunciado. Mas o sentimento de injustiça foi tal que no ano seguinte, por um papel quase secundário e de menor estofo, lá lhe deram a sua única estatueta dourada. Já Lubitsch tinha rodado com a sua amiga - um dos poucos realizadores considerados como tal pela "Divina" - Greta Garbo, o imperdível Ninotchka, o último suspiro de grandeza da actriz sueca. Ambos queriam algo menos exigente e a peça hungara Parfumerie permitia a Stewart voltar ao mundo das lojas (a sua origem familiar) e a Lubitsch voltar à sua Europa central, de onde tinha saído há já quase 20 anos. O filme juntou ainda a estrela ascendente (nunca confirmada) Margaret Sullavan e um notável elenco de secundários, condição obrigatória em qualquer filme lubitschiano. Sullavan era uma escolha obrigatória já que se tinha tornado não só a parceira habitual de Stewart mas também a sua amante proibida numa era onde as aparências importavam, mas não tanto.

 

Essa quimica entre Sullavan e Stewart funcionou perfeitamente nas mãos de Lubitsch.

Ambos são trabalhadores numa pequena loja de Budapeste e ambos estão apaixonados um pelo outro, sem o saberem. Trocam correspondência com "amigos" invisiveis e tropeçam nas mais caricatas circunstâncias até que se dão conta que a aninimosidade do dia a dia desaparece quando o amor os decide juntar definitivamente. Sem meias, numa das cenas mais poéticas da filmografia de Lubitsch, Stewart declara-se a Sullavan e deixa para trás a loja, gerida pelo inefável Hugo Matuzechek, e os complots urdidos na mais profunda frivolidade - outro tema tão lubitschiano - por Vadas, o homem que levanta suspeitas sobre tudo e sobre todos, incluindo a fidelidade da própria sra Matuzechek.

Nesse pequeno micro-cosmos laboral, Lubbitsch destroza com subtileza as ideias pré-concebidas do casamento, das relações sociais e da bondade humana. Concede-nos um happy-ending, quase forçosamente diriamos, mas sempre com condicionantes. Sempre com avisos. Sempre com antecedentes. Em The Shop Around the Corner a bonda existe mas atravessa caminhos de tal forma tortuosos que muitos espectadores pensarão se vale realmente a pena seguir em frente. É uma barreira que Lubistch não perdoa e que transmite em cada olhar desesperado de Stewart e Sullavan quando começam a suspeitar do afastamento progressivo dos seus amores invisiveis. É precisamente quando a letra se começa a descanecer que o olhar começa a triunfar e a realidade diária, tumultosas, conflictiva ganha ao romantismo e hermetismo dos amantes por correspondência. Esse contacto fisico cada vez mais forçoso - e aceite - transparece também a primeira tensão sexual do filme,  quando ele já sabe quem é ela (Klara Novak...Novak como Kim...) mas ela não sabe ainda nada dele. O primeiro desejo de toque e sentimento tanto em Klara como em Alfred começa a ganhar força. Mas o sexo em Lubitsch não será o sexo em Wilder. O alemão guarda as formas de outra era onde o austriaco explora as idiossincrasias do seu presente (e usará Monroe como isca perfeita) e portanto até aí o toque lubitschiano é fundamental para manter a tensão (narrativa, emotiva, sexual) até ao frame final.

 

 

 

The Shop Around the Corner é naturalmente um dos grandes filmes do cinema americano mas á época passou ligeiramente desapercebido. A indústria nunca levou muito a sério as comédias cinicas do europeu e em tempos de guerra (o filme estreou em finais de 1940) o Mundo estava mais preocupado com outras realidades para deixar-se seduzir por esta pequena feira de vaidades. Mas olhando para trás torna-se inevitavel ver e rever cada sequência, cada bater de portas, cada suspiro, cada segredo contado em voz baixa...cada palpitar do coração de uma loja que é também o palpitar do coração da vida mesma...


Autor Miguel Lourenço Pereira às 11:11
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Domingo, 21 de Novembro de 2010

O terror, segundo Spielberg

Os cinéfilos conhecem bem a sequência em que Kirk Douglas explica ao seu parceiro Dick Powell o que realmente atrai os espectadores numa sala de cinema quando o tema é o medo. Vincent Minelli falava nesse inimitável The Bad and the Beautiful de um caso concreto (o notável Cat People de Jacques Tourneur), mas a licção ficou. Entrou pela espinha dorsal de Steven Spielberg que antes de se fazer milionários decidiu dar uma licção sobre o medo. Chamou-lhe Duel. Podia ter-lhe chamado Fear. O medo vem sempre do inesperado.

Quem começou a conhecer o mago milionário que revolucionou Hollywood com Jaws, esse primeiro blockbuster sensaborão mas que marcou um antes e um depois da história do cinema americano, certamente não desconfiará que o mesmo autor que trouxe os efeitos especiais para o primeiro plano cinematográfico era capaz de um exercicio tão simples e económico que fosse, ao mesmo tempo, tão devastador. Na mente.

O Spielberg dos extra-terrestres e Indianas Jones formou-se em Los Angeles, na escola onde todos os jovens estudantes se cruzavam com sonhos de imitar os seus mentores europeus que os deslumbravam com projectos arriscados do outro lado do Altântico. Nesse núcleo de movie-brats nenhum atingiu o mesmo impacto do que Spielberg, mas o homem que sonhava em grande, o homem que realizaria um Dia D tão sangrente e tenebroso como o original, tinha já em mãos um projecto pequeno, pessoal e letal.

Com a mais básica das premissas Spielberg demonstrou com pouco esforço onde está a diferença entre o dinheiro e o talento. Mais tarde teria ambos e daí nasceriam as suas obras-primas. Mas sem os dólares que fizeram dele o rei de Hollywood também havia magia no seu olhar agudo. Num filme de auteur, à la Nouvelle Vague, o jovem realizador encarou o espirito solitário da América perdida e atirou-o para a estrada. Um cowboy solitário (dois?) e um duelo com um final inevitável. Afinal, não era no velho oeste que enchia as salas de cinema que o jovem Steve aprendeu de memória a frase "esta cidade é pequena demais para nós os dois". Aquela estrada também.

 

Um homem sai de casa com o seu automóvel e atira-se à auto-estrada. A dado momento cruza umas ágrias palavras com um camionista. E as peças do dominó começam a cair vertiginosamente, uma atrás de outras. O rosto fica invisivel do principio ao fim (quem pode dar cara a Deus e ao Diabo?) porque é o que menos interessa. O rosto a seguir é o do medo. E o medo está no jovem Dennis Weaver, um desses rostos familiares da América dos 70, entre os puzzles da geração Nixon e da era hyppie, que não sabe como sobreviver a esta perseguição sem pingo de piedade. Um retrato claro do clima de medo e violência que o subsconciente americano, envolvido na lama do Vietname, não consegue resolver. David Mann (o Weaver negociante) sabe que acelerar não é suficiente, o grande salto em frente não resolve um problema que pode assombrá-lo a qualquer instante. E depois do medo, vem a raiva. Depois da raiva, chega o ódio. E com o ódio chega a resposta. Um volte-face que inspiraria mais tarde o próprio George Lucas na sua absorção ao universo da Força em Star Wars e que deixa já a dica de que o velho western podia ter os dias contados, mas a essência que pautava os duelos no deserto continuaria, noutros cenários, com outros personagens mas com a mesma essência.

The Duel, essa obra-prima inicial de um homem que transformou o cinema e acabou por transformar-se a si mesmo na figura do productor moderno de blockbuster (ocasionalmente estão ainda os seus destelhos de génio), nunca chegou à salas de cinema americanas e passou pela televisão quase sem graça. Na Europa, pelo contrário, entrou directamente para os tops do ano com elogios à direita e esquerda, de público e autores consagrados. Talvez por isso o crédito dado a Spielberg (o mesmo passaria com o Lucas de THX e American Grafitti) que outros movie-brats, mais comerciais, nunca chegaram a ter fora dos States.

 

O medo ao desconhecido é a verdadeira essência animalesca do homem. Sem rosto a quem culpar, sem motivos para raciocionar, o medo atinge o mais profundo subsconsciente do Homem. Naquela luta desigual - não é o medo sempre producto de uma luta desigual? - o Homem tem de aprender a catalisar as suas emoções para sobreviver. E para viver há que matar. Primário na essência, medular no estructura, básico na genialidade. Com tanta simplicidade se formou um génio da complexidade, com tanta razão se entendeu o poder de uma camara e um rosto desesperado.  


Autor Miguel Lourenço Pereira às 10:11
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