Quinta-feira, 2 de Fevereiro de 2012

A festa privada da AMPAS

Continua a existir um problema crónico entre quem segue a corrida de prémios, seja por genuino interessa ou cinica curiosidade. Pensar nos Óscares (e falaremos sempre nos Óscares não por serem melhores mas porque são os mais emblemáticos) como uma consagração do melhor não só é um erro como também acaba por ser uma ideia profundamente infantil.

 

Definir o melhor é provavelmente o conceito mais pessoal que pode existir. Não existem, muito menos na arte, parámetros objectivos que impliquem a superioridade de uma ideia sobre a outra, de uma performance sobre outra, de uma realidade sobre outra. É tudo pura especulação. Ser o melhor não é mais do que ser o preferido de cada. Ser considerado o melhor não é, portanto, distinto em ser considerado como o favorito de muitos, seja uma maioria silenciosa, mas pagante (os sucessos de bilheteira), uma minoría gritante (como são os críticos) ou uma associação fechada. Portanto olhar para o listado de uma associação que é como um clube de chá inglês, só que sem as boas maneiras mas com o mesmo cinismo omnipresente, como uma verdadeira recoleção do melhor de cada ano é absolutamente ilusório.

Nos Óscares votam mais de 5000 pessoas. Pessoas. Membros da indústria como Clint Eastwood com toda a sua veteranía e também relações públicas que fazem do jogo uma luta de gladiadores. E entre os veteranos é sabido e confirmado que em seu lugar votam mulheres a días, jardineiros, filhos, netos e motoristas. Como se fizessem uns Óscares do seu prédio, com toda a variedade de gostos e opiniões que isso pudesse incluir. Sacar dessa lista um filme faria dele o melhor do ano? Para esse grupo minoritário, certamente que sim.

 

A AMPAS gosta de se premiar a si mesma.

O chamado “filme Óscar” não é um genéro. Funciona como uma receita, uma série de ingredientes que productores, realizadores e estúdios sabem que vão entrar no menú preferido da maioria dos seus membros. Quando um filme como The Artist aterra nos EUA pelas mãos interessadas da Weinstein Co. Não é apenas com o intuito de fazer dinheiro. É, sobretudo, uma forma de entrar nesse menú onde Harry Weinstein se sente como peixe em agua. O filme francés que nem sequer lidera as nomeações aos prémios do seu país (sucedeu o mesmo com La Vie en Rose há cinco anos) apela à AMPAS mais do que ao público gaulês porque é um filme americano clássico da cabeça aos pés. Não é importante que o director e os actores sejam imensos desconhecidos, são os ingredientes que sabem bem à boca que contam. Não surpreende que esse seja o favorito e previsivel ganhador em categorías chave. E não surpreende que os seus quatro rivais mais fortes – aqueles que certamente entrariam num lote a cinco – sejam representantes perfeitos das varias correntes que sempre encontraram o seu lugar junto dos 5000 mil “detentores da verdade”, para quem acredita nessas coisas.

The Descendants é o filme indie americano por excelência. Hugo relembra a aura artística que os grandes nomes como Scorsese ainda proporcionam a um país onde o cinema começa a ficar perigosamente sem ideias. War Horse é o épico lacrimoso que sempre definiu a evolução cronológica da Academia e de quem a admira. E The Help o piscar de olhos ao cinema de minorías (com protagonistas premiáveis que saem circulo WASP que define a essência do gremio) e popular junto do grande público. De todos é o filme menos profundo mas o que mais apela às massas e na noite dos galardões é conveniente pensar nas audiencias.

 

Todos sabem que Hollywood se leva tão a sério que a AMPAS, por muito pressing que sofra, sabe distinguir-se entre os prémios MTV ou Satellite e o seu preciado galardão. Nem Twilight, nem Harry Potter nem nada do género tem algo que fazer numa gala que se devota mais aos Clooney, Spielberg, Pitt e Streep que às Stewart, Pattinson, Radccliff ou Biebers de turno. Esse toque de distinção tem salvado os Óscares do absoluto descrédito. Porque se a minoría gritante dos críticos se rende a filmes que difícilmente entram no universo oscarizável e a maioria silenciosa vê, ano atrás ano, os seus filmes favoritos serem desprezados pelos prémios dos melhores, Hollywood, como um felino, lambe-se tranquilamente sabendo que continua a ser o elemento central de discussão da temporada de prémios, levando jornalistas, bloggers e cinéfilos a discutir méritos e deméritos de um torneio jogado à porta fechada e com regras que escapam à imensa maioria.

 

The Artist é sem dúvida um filme fabuloso mas não é porque a maioria de 5000 pessoas o elija que será o melhor do ano. Será um filme que entrará para a posteridade por innovar voltando atrás, por surpreender quando parecía que tudo estava inventado, sabendo precisamente olhar para o pretérito para emular o futuro. Os Óscares continuarão a ser uma noite de divertimento para todos mas difícilmente se pode considerar uma noite de injustiças, a não ser que se tenha votado no processo e se esteja, naturalmente, em desconformidade com o resultado. Ao resto da plebe, como Hollywood gosta de ver o mundo fora de Sunset Boulevard, não há direito a queixas e protestos. Não foram convidados à festa, têm de ficar com as sobras!

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Autor Miguel Lourenço Pereira às 18:34
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Segunda-feira, 31 de Outubro de 2011

Suspicion ou a anti-adaptação made in Hollywood

Em 1940 Alfred Hitchock aterrou nos Estados Unidos e levou para casa o único filme seu a ser galardoado com um Óscar de Melhor Filme da Academia. O sofrivel Rebecca - para os seus padrões de qualidade - não lhe permitiu vencer o prémio que nunca receberia - o Óscar de Melhor Realizador - mas tornou-o popular junto do público norte-americano. Um dos principais motivos foi a fiel adaptação do popular e homónimo romance de Dauphne du Maurier que contribuiu fortemente para o sucesso do filme. No entanto, no ano seguinte, Hitch passaria para a posteridade, pesarosamente, por ser peça fundamental num dos exemplos mais gritantes da anti-adaptação, o falhanço absoluto em transportar a realidade de um notável argumento num triste filme por encomenda.

Johnnie assume que o veneno é para si. E só para si. Que a morte é a única solução para o seu gritante problema de solvência.

Lina, como sempre, perdoa-o e esquece-se rapidamente do intenso e agonizante sofrimento que até há segundos a tinham feito pensar que o seu marido queria matá-la para herdar a sua herança. Juntos abraçam-se e seguem, rumo a uma nova vida.

Este é o final de Suspicion, segundo filme da etapa americana de Alfred Hitchock, e provavelmente aquele que melhor funciona como ovelha na sua filmografia. Apesar do Óscar ganho por Joan Fontaine - a sua actriz em Rebecca com quem não voltaria a trabalhar - o filme foi recebido com um pé atrás por público e critica. A razão? O assassinato do argumento original da obra Before the Fact de Anthony Berkeley.

Durante anos Hitch queixou-se de que foi obrigado pela RKO a alterar o final de um livro tenso e absolutamente apaixonante sobre uma mulher que assiste, impotente, à sua tentativa de assassinato pelo marido, um playboy serial-killer. A premissa inicial da obra literária atraiu de imediato o cineasta para o projecto mas os estúdios que o tinham trazido de Inglaterra impuseram um final diferente do livro. E a missão de Hitchcock era fazer com que o final fosse minimamente credível para o público que tinha lido a obra. A ideia original do cineasta nem era a da versão final mas ninguém discute - nem o próprio realizador - que o filme foi feito do primeiro ao último frame com a sua chancela.

Suspicion termina com esse amor eterno entre Johnnie e Linda mas a obra original revela ao leitor um assassino implacável que mata a mulher por envenenamento depois de ter sido responsável pela morte do seu melhor amigo e do seu sogro e de, pelo caminho, trair a esposa com a melhor amiga desta, a empregada e mais algumas mulheres que lhe vão passando pelas mãos. Na puritana Hollywood do código Hayes essas insinuações eram quase impossíveis e todo o rasto de infidelidade foram substituídos pela traquinice de um adulto infantil interpretado maravilhosamente por Cary Grant.

 

O actor inglês, que começaria aqui a sua história de amor com Hitchock - que duraria quase vinte anos - foi a principal razão para a RKO insistir num final mais dócil.

Grant começava a tornar-se num dos actores mais populares de Hollywood depois do sucesso das suas screwball comedies dos anos 30 e do tenso e apaixonante desempenho em Only Angels Have Wings de Howard Hawks. O realizador inglês conhecia e admirava profundamente Grant e cedo fez questão que ele fosse o parceiro de Fontaine nesta tenebrosa viagem. Mas longe estava ainda o anti-herói hitchockiano que Fonda e Stewart tão bem souberam entender na década seguinte. Este Grant era mais afável, cómico e tranquilo do que qualquer personagem de um filme do mestre do suspense poderia fazer supor e transformá-lo num assassino em série era, para Hollywood, um crime de lesa majestade.

A história foi portanto alterada não sem antes Hitchock ter imaginado um outro final, inspirado no livro original, em que Fontaine bebia o célebre copo de leite - que, confessou Hitch a Truffaut, iluminara com uma lâmpada dentro - mas não sem antes escrever uma carta à mãe em que denunciava o assassinato às mãos do infiel marido. Um final que foi gravado mas que ficou perdido nas prateleiras da RKO. A cena final do filme foi reescrita por Alma Reville, mulher do cineasta, e incluída nos últimos dias da rodagem quando nem sequer os actores principais sabiam como iria acabar o filme. Quando chegou ao circuito de distribuição o sucesso foi relativo e à parte do espantoso trabalho da jovem Fontaine, o filme foi catalogado como uma entretida mas mediana obra de um realizador que em Inglaterra tinha prometido muito. O cineasta - que pela primeira vez co-produziu um filme seu - assumiu o erro e jurou nunca mais voltar a alterar o final de um argumento para agradar aos estúdios.

No ano seguinte realizou Shadow of a Doubt e não abdicou do papel de assassino de Joseph Cotten - apesar da dúvida que deixa nos espectadores mais despistados - e a partir daí partiu sempre da premissa de que o público gosta de ser enganado, mas não demasiado. Os seus McGuffins, enganos irrelevantes dentro da narrativa, fizeram escola e os seus finais passaram a ser aclamados como obras primas do suspense.

 

Para trás ficou a vergonha pessoal de ter traído a sua própria filosofia e um exemplo perfeito da anti-adaptação narrativa, algo que no entanto continuou a ser moeda corrente na indústria norte-americana, desejosa de trocar um bom e sério final a mais uns milhares de dólares na conta bancária. Curiosamente Hitchock, o homem que a critica descobriu mais tarde tornou-se também no mais popular cineasta do cinema norte-americano, aliando como nenhum outro a teimosia do autor ao sucesso de bilheteira. Suspicion, como em muitas coisas, é um filme muito seu. Nesse aspecto em concreto é um anti-hitchcock, um anti-suspense e, sobretudo, uma anti-adaptação que só Fontaine e Grant conseguem transformar num filme imperdível.


Autor Miguel Lourenço Pereira às 14:20
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Segunda-feira, 17 de Outubro de 2011

O Decameron de Woody

Em 1976 o então jovem promissor Woody Allen estava prestes a transformar-se no autor por excelência da comédia intelectual que começava a ganhar sérios adeptos nos bairros mais progressistas de Nova Iorque. Atrás de si vinha já uma filmografia curiosa, repleta de detalhes que começavam a mostrar um verdadeiro sentido de genialidade. Mas foi nesse Outono que na cabeça de Woody se começou a desenhar a obra que iria, definitivamente, marcar um antes e um depois na sua filmografia: Anhedonia.

Claro que ninguém conhece este curioso filme com titulo de medicamento para patologias mentais (segundo a wikipédia é um termo psicológico para descrever a incapacidade de ter prazer em alegrias quotidianas) porque semanas antes de apresentar o filme ao público, a productora e o cineasta chegaram à conclusão que era preciso encontrar outro chamariz. Optaram pelo nome da personagem feminina protagonizada por Diane Keaton, eixo central dos delirios, já habituais, de um Alvy Allen que se inspirou em Diane, ela Hall na realidade antes que Keaton, para dar corpo e alma à sua obra. O filme acabou por se tornar num icone progressista à americana, venceu os únicos Óscares que Woody tem guardados junto às caixas de sapatos do seu armário, e demonstrou como o poder do marketing pode com tudo, mesmo com a ousadia.

Talvez Allen não imaginasse que 35 anos depois tivesse de passar, uma vez mais, pelo mesmo processo de reconstrução criativa que o levou de uma patologia a outra, numa série esquizofrénica de obras-maestras que o redefiniram como um dos cineastas norte-americanos mais globais da história moderna. Foi preciso viajar à Europa, a sua casa espiritual desde há muito, para voltar a ter de reinventar-se antes de aterrar nas salas de cinema. Ao contrário do pecado original, confuso até para os mais intelectuais do Village por onde pululava, o problema que Woody encontra com o seu novo filme é um reflexo da profunda ignorância cultural que hoje é uma realidade indismentível até na própria Europa. O Velho Continente sempre teve esse preconceito - de certa forma aceite sem resmungar pelos próprios americanos - de que era a biblioteca de Alexandria dos dias modernos, a continente onde a cultura e o conhecimento, como os cogumelos, crescia com uma facilidade espantosa face à barbárie das pradarias do outro lado do Atlântico. Ora essa Europa utópica, que nunca existiu, é agora uma Europa orfã, entre outras coisas, de conhecimento. De cultura. Uma sociedade entregue ao consumo imediato, ao estado social grátis e, sobretudo, à sabedoria de bolso, que é incapaz de analisar e entender um titulo mais complexo do que aquele que venha com parte 1, 2 e três. 

Allen não esperava isso dos seus admirados europeus. Quão enganado andava.

 

O seu próximo filme, uma homenagem felliniana, o seu grande mentor temporal, transformava Roma na sua nova Londres, Barcelona ou Paris.

Uma cidade europeia cosmopolita, repleta de vida social e de icones culturais. Uma cidade a ferver com o amor à arte, à cultura e à sabedoria milenar. Uma cidade que o iria entender como poucos, ele também um simples judeu amante de jazz e nomes pretéritos, mas que, feitas as contas, vive num mundo distante do seu.

The Bop Decameron era o titulo de trabalho do seu projecto de Outono (como Annie Hall o foi), um filme onde dois casais, um americano e outro italiano, deambulam pela Cittá Eterna sem nunca se cruzarem mas vivendo episódios similares. Um filme com um elenco de estrelas, como é hábito, onde Penelope Cruz se transforma em "Mamma Roma" de busto proeminente a la Loren, e em que há até espaço para o mais culto e eclético dos artistas europeus, Roberto Benigni, aliar-se ao seu alter-ego americano nesta história de cineastas cultos e esquizofrénicos.

Mas nem a presença do grande e imenso poeta das esquerdas italianas impediram Allen de se desfazer da sua reminiscência a Bocaccio e o seu mitico Decameron, já adaptado ao cinema por Pasolini nos anos 70. Allen viu o filme e ficou impactado com a crueza da obra do cineasta italiano e quando soube que o seu próximo projecto seria em Itália a ideia de homenagear a Pasolini (mais do que a Bocaccio) ganhou forma. Mas à medida que as filmagens iam decorrendo a productora e o cineasta começaram a descobrir uma dura realidade: ninguém sabia sequer o que Decameron era.

O nivel de ignorância cultural na Itália de Berlusconi é proporcional ao tamanho dos decotes das apresentadores de televisão, aos processos arquivados contra o omnipresente primeiro-ministro e, é preciso dizê-lo, à qualidade do último trabalho do nova-iorquino, o já inesquecível e tão recente Midnigh in Paris. Incrédulo, Woody parecia não acreditar quando as pessoas que contactava na indústria cinematográfica italiana (e os seus distribuidores europeus que lhe permitiram uma segunda juventude) não só desconheciam os Decameron originais (a obra escrita e a obra filmada) como os que sabiam de que se tratava o filme pensavam que Bop seria apenas uma versão actualizada do livro erótico de Bocaccio (algo tão insuspeito num homem que fez da masturbação a sua actividade sexual mais reconhecida) e não um titulo de livre inspiração e homenagem. Onde estava a parte 1, 2 e 3 pareciam pensar?

 

Como o cinema é uma arte mas também uma indústria que necessita tornar-se rentável a Allen foi colocado o mesmo problema daquele Outono de 76. E acabou por mudar o titulo de trabalho para Nero Fiddled, um nome que invoca outro lado de Roma (mais destructivo podemos supor) e menos proclive a confusões que não seriam reais se a Europa ainda fosse aquilo que nunca foi mas sempre tentou parecer que era.  Depois de um filme a transbordar de conhecimento e cultura como foi a sua última aventura parisina, ninguém espera que o cineasta repita a dose em versão italiana, por muito tentado que seja a fazê-lo. O público, mesmo o dele, não aguentaria duas doses consecutivas de entretenimento cultural num mundo onde o entretenimento se tornou o pão e o vinho e o cultural o guardanapo a que se limpa a boca. A ignorância nas salas de aula, nos programas televisivos, nas tertúlias cibernéticas (as outras parecem cada vez mais utopias dentro da utopia) é de tal forma gritante para as gerações de hoje que o estranho é saber de quem e o que é Decameron e não o contrário. O conhecimento tornou-se um peso, um karma social face à estupidificação da imensa maioria, daqueles que trocam os clássicos pelo novo Twilight, daqueles que deram razões a Lucas e Spielberg e à sua cultura de blockbuster e que hoje seriam incapazes de identificar em Annie Hall aquele homem com quem Alvy falava e que, de certa forma, previu tudo isto. Um tal de Marshall McLuhan.


Autor Miguel Lourenço Pereira às 09:57
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Sexta-feira, 11 de Março de 2011

A Serbian Movie: o perigoso jogo da justiça!

Quando a justiça se mete em campo alheio o mais normal é que resulte em desastre. Não é nem a primeira vez nem será, lamentavelmente, a última. A Arte - seja qual seja a sua expressão - tem uma linguagem própria que não ultrapassa, em nenhum caso, os limites da própria lei. Então porque está tão interessada essa mesma lei em mexer com os designios da arte? Quando um organizador de um certame é apresentado à justiça como um criminal por exibir um filme polémico que explora realidades que existem e que estão penalizadas em muitos países, chegamos a um extremo de loucura onde tudo deixa de fazer muito sentido.

 

 

 

A Serbian Movie não é um producto novo.

Toca em campos extremos mas não propriamente inéditos e o que explora é mais o filão mediático de uma realidade que muitos teimam em esconder mas que está aí e é bem real: o "newborn" porn, o incesto, a pedofilia infantil, os "snuffmovies" estão aí para quem os quiser ver, legal ou ilegalmente. Todos anos vários projectos dentro do porno ou do cinema underground lidam com esses temas com a mão da lei sempre a tentar passar-lhes por cima. Afinal a sociedade ocidental tão democrática e liberal ainda não entendeu que uma simulação não é real e que por se filmar um determinado tema não quer dizer (muitas vezes é até o oposto) que os seus actores prediquem esses valores.

A Serbian Movie é o novo Saló, o novo Clockwork Orange, o novo Empire of the Senses, o novo Lolita, o novo Pretty Baby, o novo Extasis, ... Com uma diferença particular: é um mau filme.

Cinematograficamente a produção do cineasta sérvio Spasojevic deixa muito a desejar.

Parte de uma premissa já vista que se centra essencialmente num homem, um realizador de filmes porno determinado a deixar o meio que é convencido por um amigo a realizar um último filme (com qualidade) e que acaba envolto num meio degradante onde o sexo e a morte caminham perigosamente lado a lado até chegar a um final tremendamente chocante. Mas a técnica é rudimentar, o ritmo aborrecido e algumas das sequências acabam por se tornar previsiveis. Falando apenas de cinema e nunca falariamos de A Serbian Movie. Falando de temas polémicos e a sua inclusão torna-se obrigatória. Saló era polémico - foi provavelmente o primeiro filme a explorar a nudez adolescente sem receios - mas bem feito. Os filmes de Kubrick um pedaço de evolução cinematográfica, e até as obras de Malle e Oshima tinham um valor artistico evidente. Todos eles tiveram a lei às pernas, foram proibidos em vários paises durante muito tempo e ainda hoje ter o filme numa colecção privada inspira olhares reprovadores de visitas mais conservadoras. A sociedade é assim, gosta de funcionar sob a premissa se não vejo não tenho porque assumir que existe. Mas, curiosamente, todos esses filmes se inspiravam em temas reais. A Serbian Movie, tristemente, também.

 

Por muito repugnante que seja a simulação de uma cena de sexo com um recém-nascido ou um pré-adolescente, a verdade é que A Serbian Movie não o pratica. As sequências são - ao contrário da maioria do cinema porno - falsas, utilizando num primeiro caso um boneco mal caracterizado e no segundo um exercicio de montagem hábil. Por muito triste que seja a realidade dos "snuff" ninguém morreu realmente na rodagem do filme que se saiba ao contrário de muito do producto real que circula pela rede. Mas a intenção parece ser mais penalizadora do que a realidade e desde que chegou à luz do dia a justiça, de vários paises, tem tentado fazer do filme um exemplo. Não podendo - ou conseguindo - punir o autor, dedicou-se a punir os exibidores.

Em Espanha os problemas começaram com o festival de San Sebastian que pretendia exibir o filme mas foi proibido. Sitges, um dos mais prestigiosos festivais da Europa de cinema de terror, foi mais longe e mostrou ao público o que ninguém queria ver. Resultado? O seu director, o espanhol Angel Sala, foi acusado pela justiça do país vizinho de incitamento à pornografia infantil e à pedofilia. E pode receber um duro correctivo judicial.

O que não se percebe em tudo isto é o papel da justiça em algo que sempre será incontrável: a liberdade artistica.

A pintura medieval e renascentista, a literatura clássica e dos séculos XIX e XX sempre exploraram a violência extrema e a sexualidade juvenil de forma mais ou menos clara. A literatura principalmente, talvez por maior liberdade criativa, foi mais longe que todas as outras artes e não é dificil aos mais interessados encontrar exemplos que inspiram filmes como Salo ou A Serbian Movie. Cinematograficamente os exemplos são poucos porque os filmes são caros de fazer e têm de ser exibidos e productores e distribuidores habitualmente não gostam de correr riscos. Sala correu. Dorminsky também. O primeiro está em sarilhos, o segundo parece tranquilo. Mas só o facto de um filme levantar tanta celeuma leva a perguntar-nos como é que a justiça se arroga o direito a proibir a liberdade artistica que não causa nenhum dano a terceiros. O politicamente correcto tornou-se o santo e senha dos dias de hoje e nem a sugestão se livra do castigo. Autores como Jack Sturges, David Hamilton, Sara Manttle e Nabokov publicitários de revistas de moda como a Elle ou empresas como a Benetton e realizadores como Pasolini ou Spasojevic são vistos pela sociedade como o problema, quando apenas servem de veículo para algo que é real e foge do controlo daqueles que acreditam que tudo pode ser legislado e levado a tribunal. A triste realidade diz-nos que não, que isso não é assim. Mas tem o cinema culpa de o explicar a uma audiência maior? 

 

 

 

À custa desta histeria social, A Serbian Movie vai tornar-se forçosamente num filme de culto. Terá edições especiais em dvd que esgotarão porque muitos quererão ver o que aparentemente é tão proibido. Cinéfilos curiosos ou espectadores normais comprarão o filme provavelmente mais depressa que pedófilos ou adeptos da violência extrema. O poder dos Media garantiu ao filme que sobreviverá ao tempo quando a sua qualidade intrinseca nunca o permitira. A justiça - a espanhola neste caso - na sua corrida para defender a moral e os bons costumes conseguiu o efeito contrário. Despertar a curiosidade. E o Ser Humano continua a ter especial predilecção pela maçã do pecado. Especialmente se está podre.

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Autor Miguel Lourenço Pereira às 14:58
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Segunda-feira, 3 de Janeiro de 2011

Postlethwaite, o valor insubstituível do secundário

Não ganhou Óscares, não vendia entradas e não tinha um nome fácil de pronunciar. Em resumo, Pete Postlethwaite tinha todas as condições para passar desapercebido na sua longeva carreira cinematográfica. Mas era um belissimo actor, uma ave-rara, cada vez mais perto da extinção. Um pássaro livre que exemplificava bem todas as virtudes que fizeram do "actor secundário", um elemento nuclear na equação de qualquer filme. São actores como ele que fazem os grandes maiores do que são muitas vezes. Poucos sabiam apreci-lo, muitos nunca o entenderão, mas mais do que qualquer estrela, actores como ele são insubstituiveis.

 

 

 

Quando um dia perguntaram a John Ford quem era o maior actor de Hollywood e este respondeu "Walter Brennan" poucos perceberam a magnitude da declaração do homem que fez do western uma arte. Brennan, veterano da era do cinema mudo, era a base fundamental de qualquer filme de Hollywood. Era o eterno "secundário". o homem em quem os realizadores confiavam para trazer humor, drama, emoção e vida a qualquer filme. A estrela, o protagonista, tinha de comportar-se como tal. Para a plateia. Mas o secundário podia brilhar e fazer do filme seu, não tinha amarras mediáticas que o segurassem. Brennan foi, durante 30 anos, o mais genial dos secundários de Hollywood. Abriu uma escola de nomes nucleares na evolução cinematográfica de Hollywood. Para casa Brando havia um Malden, para cada Stewart um Mitchel, para cada Newman um Kennedy, para cada Lemmon um Mathau. Essa velha estirpe, dos homens sem glória, sem direito ao nome por cima do cartaz, foi definhando à medida que o tempo decidiu que todos tinham direito aos seus 15 minutos de fama. Hoje o secundário, como tal se entende, é uma raça em extinção. Porque todos querem ser protagonistas.

Essa malaise não afectou nunca o britânico Pete Postlhwaite. E talvez por isso ele foi imenso no seu mester, na sua área. Fez brilhar Daniel Day-Lewis em In the Name of the Father, ofrecendo o contra-ponto perfeito ao over-acting extremo do magnifico actor inglês. O mesmo se pode dizer aos seus desempenhos em Amistad, Usual Suspects, Dragon Heart ou os mais recentes Inception e The Town, os seus dois últimos projectos. Fez do contra-ponto a sua arte e exprimiu-a até ao tutano. A sua figura franzina e recta impunha um misto de respeito reverencial e carinho intranhável que lembrava bem essa escola dos actores bigger than life das penumbras.

 

O actor de 64 anos falecido vitima de um cancro não foi um actor precoce. Só começou a aparecer regularmente em projectos cinematográficos na década de 80, pontualizando algumas participações televisivas, que em Inglaterra é sempre um degrau fundamental, salvo se se é um mestre shakesperiano. Postlethwaite não o era - apesar do sucesso do seu Rei Lear no ano passado nos palcos de Liverpool - e por isso ganhou a pulso um lugar na lista dos actores anónimos mais cotados dos dois lados do Altântico. Spielberg, que o dirigiu em Lost World e Amistad, votou-lhe o mesmo elogio que Ford a Brennan, entendendo bem a mecanica da interpretação do mago do Cheschire.

Mas na única vez em que foi protagonista, Postlethwaite demonstrou que o saber não tem limites. Foi em Brassed Off, filme fundamental da filmografia social britânica da década de 90 e que ajudou a redefinir a politica social com as cidades industriais destroçadas pela politica economica dos governos conservadores de Tatcher e Major. Uma pequena localidade, como tantas outras, onde o desemprego floresce e em que uma banda musical local é a única ilusão que sobrevive. Banda onde milita, claro, o virtuoso Pete, um homem de principios como poucos que lançou a tónica para um revisitar do passado industrial inglês e onde começou também a sua campanha como activista. Marchou contra guerras, lutou em prole do meio ambiente e defendeu as politicas sociais do New Labour com unhas e dentes. Foi figura dentro e fora do grande ecrã. Como sempre, sem vender capas de jornais, também essa sua labor passou desapercebida ao lado dos milhões de Clooney e companhia. Nesse filme despontava um jovem Ewan McGregor, mas todos ficaram encandilados com o grito social de um actor que muitos admiravam e poucos conheciam.

 

Já minado pela doença, a carreira de Postlethwaite foi sofrendo com o passar dos anos as agruras da vida. A sua morte, precoce tendo em conta o quanto ainda se podia esperar de um espirito irrequieto como ele, é também o prenuncio de uma era dificil para os cineastas e cinéfilos que buscam sempre na sombra aquela imagem de raiva, dor, ódio, conforto e esperança que actores anónimos e que vivem longe dos holofotes são capazes de propocionar. Postlethwaite era de outra raça, uma escola imemorial. Com ele, como com qualquer outro grande, fica a lenda, as imagens e os momentos que o celuloide capta para a eternidade, onde tudo é permitido e nada acontece por acaso.

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Autor Miguel Lourenço Pereira às 15:16
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Sábado, 1 de Janeiro de 2011

Piratas para o futuro

O ano novo que agora arranca lança também uma vez mais o eterno debate da pirataria de obras culturais, situação que envolve profundamente os sectores da indústria cinematográfica. A habitual hipocrisia governamental, capazes de manobrar a vida do cidadã-comum a seu antojo (veja-se legislação anti-tabaco) prepara-se para ganhar nova forma com um paquete de leis que se prevê transversal nos principais países europeus, mas que conta com o posicionamento claro da opinião pública. A tamanha hipocrisia ganha especialmente forma quando, progressivamente, os preços das entradas para qualquer espectáculo vão subindo a valores proibitivos, as ajudas governamentais ao sector continuam pujantes e os salários dos principais intervenientes sobem a números insultantes para a maioria da comunidade civil. E no entanto, o termo pirataria, já de si coloca o perigoso sentido ético no meio de um debate vazio em tudo, menos em falsos moralismos.

 

 

 

Que é piratear um filme? Que é atentar contra o direito de um autor, seja esse autor um músico, cineasta, productor ou quem quer que seja?

Hoje em dia as descargas de productos culturais, e ficamo-nos pelos filmes que é o que realmente nos importa, está a atingir os seus valores máximos. A resposta da indústria - e de alguns autores priveligiados - é o confronto. Legal, amparado por uma legislação feita por muito poucos para proporcionar lucro a um grupo ainda mais restricto. Nesse confronto será dificil aos espectadores-internautas vencerem. O legal é quase sempre imoral e esta realidade não é excepção.

A indústria cinematográfica vive, sobretudo, uma crise de ideias. Apostas em productos fáceis, não necessariamente caros e com retorno imediato. Retorno que aumenta exponencialmente quando entra em jogo o mercado de DVD e, posteriormente, a venda para o circuito televisivo, hoje quase tão imediato como o lançamento da própria edição em disco. É nesse mercado paralelo que as productoras realmente encontram o seu lucro. Porque hoje ir ao cinema é uma autêntica odisseia. E não nos esqueçamos. O preço do bilhete de cinema é o que é - ou exagera no que devia ser - pela experiência em si. Pelo som, pelo ecrã, pela qualidade do acento, pelo ambiente que se cria. Por tudo menos pelo filme. Esse, na maioria dos casos, pode ser visto e muitas vezes é-o, noutros cenários, noutras plataformas, e sobrevive. A experiência fica pelo caminho. E com a realidade económica actual só realmente vai ao cinema aquele que procura a experiência de ir. O cinema de massas, como concebido por Hollywood nos anos 30, como objecto de escape, já pouco apela ao espectador que sabe que o producto o vai encontrar à venda em poucos meses para consumir em casa ou directamente no televisor pouquissimo tempo depois. Os internautas limitam-se a antecipar o processo e cortam no lucro de produção, não na liberdade dos autores.

 

Parece indignante ver alguns autores - e em Espanha o debate ganhou esta semana nova forma com vários actores e cineastas a criticarem os espectadores internautas com a reprovação no parlamento da lei Sinde - protestar contra esta realidade.

Estamos a falar, em muitos casos, de elementos que actuam, dirigem e produzem obras que são subvencionadas pelo próprio Estado. Muitos pagam a uns poucos para fazerem filmes que verão ainda menos. Essa tendência europeia de subsidiar o cinema é um dos principais motivos do atraso da Europa face aos demais continentes que já perceberam a mecânica social que implica a produção cinematográfica. A existência de ICAM´s e organismos do género, sempre aptos a apoiar projectos "amigos", traz a burocracia e compadrio politico ao universo da arte. Uma gestação já de si perturbadora o suficiente para depois dar direito a uma reclamação moral por parte de quem não a tem. Como a ministra da cultura espanhola, a argumentista Gonzalez Sinde, que subvencionou com um milhão de euros como ministra um filme da qual o argumento é da sua total autoria. Um filme que, já por si, recaudou 3 milhões de euros em bilheteiras apesar de ter sido o grande sucesso comercial espanhol nas descargas virtuais. A autora da lei que criminaliza esses piratas esquece-se do incompreensivel tráfico de influências que permitiu ao filme, inicialmente, passar a fase de produção.

E como esse exemplo, tantos outros. No caso português são gritantes os casos de António Pedro-Vasconcellos e João Botelho que, incapazes de financiar os seus próprios projectos, escudam-se no porreirismo estatal para garantir que continuam no activo, apesar do relativo desinteresse público às suas obras que, ultimamente, procuraram no sexo fácil o chamariz de uma bilheteira que continua a olhar de soslaio para o cinema pátrio. Em vários países da Europa a situação repite-se, de Tornatore em Itália a de la Iglesia em Espanha, criando um ciclo fechado onde o dinheiro público cai sempre nos mesmos bolsos que acabam por ser, paradoxalmente, os que depois reclamam a penalização do espectador internauta. Em Hollywood, onde as descargas significaram um profundo retrocesso no ritual de ir às salas de cinema, o problema tem outra dimensão. Os filmes pirateados são-no, essencialmente, para um público que não pode ver in loco os filmes em questão. Ou porque as estreias são reduzidas (o mercado americano de distribuição está repleto de paradoxos) ou porque são espectadores internacionais que querem antecipar, em semanas, as estreias previstas para a sua terra natal. Os grandes blockbusters continuam a gerar milhões, o cinema animado e familiar está em crescimento e a perda significativa nota-se no cinema indie e mainstream dramático. Mas aí a pirataria é a menor das culpadas. Os preços, horários, fecho de salas centricas e, sobretudo, a emergência do mercado DVD a um preço acessível travou a ida regular de vários espectadores ao cinema. Esses são, provavelmente, os que menos recorrem ao filme pirateado. E acabam por ser, em grande parte, os grandes ausentes neste debate.

 

E voltamos ao cerne de quem defende a lei da criminalização da pirataria. Muitos falam no direito de autor violado. Mas direito de quem?

Do cineasta, actor, productor, argumentista ou técnico que já foi pago previamente e que não vê afectado os seus rendimentos? Porque os salários por prestação do filme no box-office são cada vez mais raros, esses grandes nomes que se aliam contra a causa da democratização do cinema fazem-no mais por compadrio do que por sentimento de injustiça. Da mesma forma que o filme estará a repetir-se, vezes sem conta, no circuito televisivo gratuito anos sem fim (não foi It´s a Wonderful Life resgatado do anonimato pela televisão gratuita?), também a internet permite um acesso a todos de um producto acabado e em nada vilependiado. Pior serviço contra os direitos de autor fazem os espanhóis, franceses, italianos ou alemães que dobram todos os filmes estrangeiros, danificando directamente o producto final oferecido e o respectivo direito de autor e actor a ver a sua obra reproduzida fielmente. Mas isso, como é uma indústria paralela que gera dinheiro e emprego, continua a ser um tema tabú. A pirataria, como não gera lucro, nem para productoras nem para os cofres do estado (como muito para as empresas telefónicas que ganham com o volume de descargas nos seus servidores), rema contra a corrente do falso moralismo e do politicamente correcto.

Um espectador que descargue um filme e fique impressionado por um actor, argumentista ou director e se passe por uma loja e compre um dvd onde estes apareçam está a contribuir, indirectamente, para o sucesso da indústria. Mas esse mesmo espectador, sem essa liberdade de escolha, e com os preços proibitivos do mercado (em Londres o preço de um bilhete ronda os 12 euros, em Madrid os 8, em Roma os 9 e em Portugal já ultrapassou os 5 em alguns locais), talvez nunca tivesse oportunidade de o ver e de descubrir uma nova oportunidade. Mas aqui o importante é o lucro e nada mais. O lucro das equipas de produção, dos milionários de serviço que ocupam neste debate o mesmo papel que os gestores bancários, os principais responsáveis politicos ou os empresários mais elitistas. O circulo do dinheiro é fechado e quem o ousa debater sabe que terá, contra si, toda uma máquina habilmente preparada com muita lei e pouca moral.

 

 

 

Descargar filmes faz parte da consciência de cada um. Os que valorizam a experiência cinematográfica acima de todas as coisas têm a tendência em menosprezar o cinema pirateado. Não o devem fazer. Ambas as realidades podem coexistir num mesmo cinéfilo, que procura coisas diferentes de dois productos pouco similares. Piratear um filme devia ser um direito, não uma cruz. Não há, nem haverá nunca, perdas suficientes para justificar esta corrente persecutória. Talvez essas indústrias paralelas de dobragem, esses dinheiros estatais ou esses lucros excessivos, producto do circuito de distribuição sejam a verdadeira pirataria. O resto é apenas sobrevivência. Como em tudo neste Mundo...

 

Feliz 2011!

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Autor Miguel Lourenço Pereira às 10:57
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Sexta-feira, 31 de Dezembro de 2010

2010 - Filmes do Ano II

 

 

 

Inception

 

Se há um cineasta com uma carreira absolutamente imaculada na passada década, esse é sem dúvida Christopher Nolan. Foram só cinco filmes, mas todos eles atingiram um grau de genialidade ao alcance de muito poucos. Nem Eastwood, nem os Coen, nem Scorsese, nem Jackson puderam roçar de forma consecutiva a perfeição. Memento, Batman Begins, The Prestige, The Dark Knight...a conclusão lógica a este ritmo frenético só podia ser Inception.

Obra-prima para a história, verdadeiro tour de force emocional, a mecânica do último filme de Nolan desafia as próprias noções humanas de acção-reacção que pautam os nossos sonhos, nosso refugio e também, inevitavelmente, a nossa perdição. Nessa aventura onírica a acção é o de menos, o som de Piaff ao ritmo da partitura titânica de Hans Zimmer pautam o ritmo de tragédia grega com traços profundamente shakesperianos onde a redenção funciona como alavanca para restaurar a normalidade. Redenção de um filho com um pai, redenção de um homem de negócios com o seu parceiro, redenção de um homem com uma mulher. Mulher intensa como Marion Cottillard capaz de reduzir a um autêntico suplicio de Tantalo o drama de Cobb, o inimitável Di Caprio, e atirar toda uma equipa de audazes vanguardistas para um mundo imprevisivel, temivel e perturbador. Até ao último frame, a essência de Inception está dentro de cada um de nós. Nolan provou que se pode chegar tão longe, depois de já ter dado vários toques de atenção. Será muito dificil igualar-se a si mesmo. Talvez nos sonhos de cada um.

 

 

 

 

The Hurt Locker

 

Não é por acaso que o filme que triunfou nos Óscares em 2010 tenha sido o menos visto da história do cinema norte-americano. The Hurt Locker é tudo menos um filme made in USA. A frontalidade da camara de Katryn Bigelow, uma mulher para a história, choca com o prosaico compadrio da mensagem patriótica que pauta quase todo o cinema bélico americano, mesmo aquele mais critico. A América dos supermercados, casas pré-fabricadas e familias funcionais e perfeitas é uma utopia que passa ao lado de um filme que vive constantemente no fio da navalha. Na trepidante emoção de um fim previsivel e inevitável para um homem, um espelho do lado selvagem do ser Humano, que sabe que está destinado à acção e não á sedentarização sócio-cultural que implica a vida, hoje em dia, na América e no mundo ocidental. Mais do que as bombas que desarmar é a mente de Jeremy Renner, imensa revelação/confirmação, que funciona como detonador de uma realidade a que muitos preferem fechar os olhos, escudando-se em hinos, bandeiras e discursos feitos. The Hurt Locker é dificilmente um filme bélico. Na essência, é uma obra profundamente filosófica e humana. E, acima de tudo, livre de preconceitos.

 

 

 

 

Shutter Island

 

Quanto Martin Scorsese quebrou a malapata de 30 anos e levou para casa os Óscares que lhe proporcionou The Departed, um dos seus filmes mais certeiros apesar da critica de alguns, a maioria pensou que o cineasta iria abrandar o ritmo e dedicar-se a projectos mais pessoais. Mas no meio de tudo isto surge Shutter Island e o velho ritmo frenético de Marty onde nada é, absolutamente, o que parece. Uma investigação de rotina transforma-se numa caça ao rato trepidante onde nenhum detalhe pode ser olhado com despreza, com pena de perder-se o fio à meada. Acreditar ou não, uma decisão pessoal que o cineasta deixa na mão do espectador, é a mecânica de Shutter Island, um filme superlativo que entra directamente para o top 10 da carreira do realizador, o último dos movie-brats a manter-se no activo, e que acenta, apesar de tudo, na imensa caracterização desse monstro interpretativo que é Leonardo Di Caprio. Tal como no anterior projecto em conjunto (e já vão quatro), também aqui o mais completo actor norte-americano da actualidade dá a profundidade necessária para que a camara de Scorsese entre em mundos inimagináveis. Um filme a que é impossível resistir.

 

 

 

 

The Road

 

É sempre dificil orquestrar uma obra onde os agentes se reduzem até chegar ao nada. O cataclismo do planeta Terra, descrito magistralmente por Tod McCarthy na obra homónima é o ponto de partida para um filme trepidante e tenso até ao momento final. Esperança, muito pouca. Mas o desespero, a morte, conceitos inevitáveis quando se versa sobre o fim, vão-se diluindo no coração de uma relação fraternal que se ampara numa pistola com as balas suficientes para evitar uma dor fisica para lá da humana. No meio dessa corrida contra o espaço, mais do que contra o tempo, John Hillcoat encontra o seu profeta, o seu mensageiro perdido no olhar destroçado de Viggo Mortensen, o homem que perdeu tudo a ponto de sentir numa simples gota de Coca-Cola todo o prazer de um passado obliviado para a eternidade. The Road é um dos filmes mais humanos da última década porque nele está todo o lado obscuro da Humanidade. E só isso é suficiente para ver e rever, ver e rever, ver e rever...

 

 

 

 

 

 

The Social Network

 

O cinema continua a resumir-se facilmente a um tridente fundamental: guião, representação, direcção.

The Social Network tem tudo isso na medida certa. Uma história real e conhecida, sobre como um jovem universitário desbravou o caminho a ponto de tornar-se no mais jovem bilionário da história, desenhada com uma precisão cirúrgica. Um elenco de jovens promessas que surpreendem (Timberlake, Mara) e confirmam (Eisenberg, Garfield) e mantêm o ritmo alto da trepidante narrativa. E a cuidada direcção de um cineasta que evolucionou bastante desde os seus primeiros dias de thrillers com tons negros, como Se7en e The Game, até ao drama orquestrado com todos os condimentos que agradam ao público mainstream, como já tinha antecipado com The Curious Case of Benjamin Button. Graças a esta receita tão velha quanto o cinema mas cada vez mais a cair em desuso, é fácil sentir que The Social Network emerge como um dos filmes mais importantes de 2010. Sem ser um fenómeno cinematográfico capaz de criar escola não deixa de apontar um caminho que muitos defendem há largos anos e que a teimosa Hollywood teima obstinadamente em esquecer.

 

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Autor Miguel Lourenço Pereira às 09:17
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Quinta-feira, 30 de Dezembro de 2010

2010 - Os Filmes do Ano I

 

 

 

The Town

 

Profundo exercico de profundidade filmica, em The Town houve uma tripla confirmação. Que Jeremy Renner é um grande actor em potência. Que Ben Affleck é um grande realizador em potência. Que o cinema dos Eastwood e Scorsese terá sempre herdeiros em potência. O que The Town consegue criar é um espirito de regresso ao passado, ao bom cinema heist, que conheceu a sua última belle époque na década de 70. O filme da crueza humana, relembrando os dias de um tal Scorsese em Mean Streets e de Eastwood em Mystic River. E relembra que Hollywood pode e sabe ser original quando quer, havendo mais do que mão de obra e ideias suficientes para criar uma dinâmica captivante do principio ao fim. Num filme profundamente masculina há exemplos femininos sólidos e bem longe dos esteriótipos, há uma profunda busca de redenção e um retrato de dor e impotência que se estende hoje a qualquer realidade suburbana do Mundo. Um filme que é, também, uma história de amor e uma promessa de que algo melhor está sempre por vir.

 

 

 

 

The American

 

Há alguma crueza no frame final de The American, uma especie de punição divina que por muito inevitável que soa não deixa de confirmar o tom amargo de cada movimento narrativo que vai acompanhando a última missão de um assassino a soldo numa aldeia perdida no meio do monte no coração de Itália. Há um padre com remorsos, uma belissima prostituta à procura de um rumo e um homem farto de ter de se esconder. No meio deste cruzar de emoções um objectivo nunca claro, uns coadjuvantes que soam a falso e um ritmo pausado, fotográfico e cinzento, capazes de transformar a solarenga Campania num prelúdio eterno do Hades. The American é, portanto, um filme imprevisível e de um ritmo muito europeu com um desempenho extremamente sólido de um actor que parece ter sido moldado para este tipo de papeis e com um cineasta que confirma ter um toque de distinsão que promete algo novo a cada twist. E em The American o que não faltam são movimentos seguros e desconcertantes. Como a vida em si mesma.

 

 

 

 

The Ghost Writer

 

Quem leu primeiro o livro de Robert Harris sabe que a tarefa de Polanski estava facilitada por uma trama muito bem estruturada com base numa ficção que não dorme muito longe da realidade. O excelento argumento do autor britânico abre as portas para um thriller noir intenso e sereno que o realizador polaco sabe manobrar com a precisão de um relógio, controlando os tempos e os segredos com a certeza de que o caminho final é um só e que os atalhos acabarão todos por mergulhar na avenida principal. Se Ewan McGregor exacerba o seu habitual ar de espanto a cada frame, Pierce Brosnan confirma-se como um eterno seductor e rapta a camara com facilidade dando uma profundidade à narrativa filmica que a obra escrita não possui. Rei dos filmes europeus do ano, The Ghost Writer caminha quase sempre pela estrada certa e mesmo os solavancos que surgem pelo caminho apenas servem para preparar o espectador para tudo menos para o final, destilado como um whisky forte, não apto para os mais débeis.

 

 

 

 

An Education

 

O cinema britânico sempre teve um toque de subtileza que lhe permite mergulhar no universo social com mais certezas do que dúvidas, fugindo do existencialismo continental e da falsidade norte-americana. Esse respeito pelo real e essa absorsão do mundano permitem que, de tempos a tempos, surjam obras da talha de An Education.

A dinamarquesa Lone Scherfig pegou num guião do muito britânico Nick Hornby sobre uma adolescente seduzida pela Londres do twist (e não só) e montou um filme delicioso e mordaz onde a critica social da mentalidade fechada dos ingleses dos anos 50 encontra já o eco da liberdade que os swinging sixties iriam proporcionar aos mais ousados. No meio desse turbilhão de emoções e dúvidas surge a imagem chocantemente apaixonante de Carey Mulligan. A jovem rapariga do frame 1 dista muito da emancipada mulher do frame final. Pelo meio assistimos a um filme profundamente feminino e sedutoramente humano que acenta, e muito, na qualidade interpretativa da grande revelação do ano cinematográfico, uma verdadeira lufada de ar fresco que ajuda a relembrar que, no cinema como em tantas outras coisas, os ingleses têm um toque muito especial.

 

 

 

 

10º

Invictus

 

Clint Eastwood tem um toque de classe que o torna especial. Qual rei midas, qualquer projecto que toque, por muito inverosímel que soe, torna-se um filme obrigatório de ver, rever e pensar. Até mesmo a sua primeira aventura no mundo do desporto (e num desporto tão pouco americano) se transforma numa épica humana que faz todo o sentido para quem seguiu a evolução na carreira do último dos clássicos norte-americanos. Com um dos seus actores fetiches (Morgan Freeman como o ponderado Nelson Mandela) e o redescoberto Matt Damon (que repescou para Hereafter), o cineasta montou na perfeição o cenário em que se encontrou a África do Sul do pós-apartheid, onde o desporto serviu, mais do que nunca, para unir os dois pólos raciais que se enfrentavam no país. Um filme terno, intenso e filosófico, misturado com belas sequências de acção e um ritmo captivante, Invictus é sem dúvida um marco cinematográfico no ano que termina e uma confirmação absoluta de que a filmografia de Eastwood se aprimora a cada ano que passa.

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Autor Miguel Lourenço Pereira às 11:54
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