David Fincher cimentou as bases da sua carreira com Se7en. Mas o estatuto de culto deve-o, sobretudo, a Fight Club. A adaptação da obra homónima de Chuck Palahniuk não é tão completa cinematograficamente mas a mensagem de rebelião social tocou verdadeiramente as bases do meio underground que reconheceu a coragem do cineasta em mergulhar no olhar perdido e esquizofrénico de um tal Tyler Durden.
Fight Club agarra o espectador pelo pescoço e mantem-no no ar durante duas horas.
Quando o deixa cair, mais por fastio do que por falta de forças, a queda é profundamente dolorosa. Masoquisticamente, queremos mais. Como os membros do Fight Club, cair desta forma transforma-se numa liberação individual. Um arrancar de espartilhos, um grito no silêncio congénito e diário da sociedade urbana contemporânea. O desafio de Tyler Durden a si mesmo, a todos, é o desafio de como romper uma rotina social que esconde os verdadeiros instintos humanos, molda-os e encaixota-os sem qualquer piedade. Num universo onde a vida vale pouco, a morte é magnificada e as obrigações sociais se tornam mais importantes do que os valores pessoais, Fight Club não oferece a outra face. Pelo contrário, toma a iniciativa de dar o primeiro golpe.
Fincher entendeu-o melhor do que ninguém. Porque ele também sempre caminho do outro lado, porque ele sempre também quis colocar em cheque esses valores sociais que transformaram o mundo contemporâneo num longo e interminável videojogo. Se em The Game havia um profundo masoquismo humano contra o fausto e a opulência, contra o dinheiro e o comodismo social, em Se7en eram os próprios valores humanos que eram colocados em cheque, levando a um limbo nunca visto os conceitos de “certo” e “errado”.
Para Fight Club funcionar cinematograficamente era necessário ter um cineasta com a sensibilidade de Fincher.
Mas também um leque de actores que fosse, eles mesmos, o desafio soberano ao status quo social. E quem melhor para representar os dois lados da moeda, os dois lados do espelho, que o vulgar Norton e o divino Pitt. Nada poderia ser mais distante do que o olhar contido e reflexivo de Edward Norton, esse imenso actor que em 1999 atingiu o seu pico demasiado cedo (foi o ano também de American History X) e o corpo desenhado com o pincel de Miguel Angelo e o riso desafiante da suprema auto-confiança de Brad Pitt. Houve poucos cineastas que acreditaram tanto num actor como David Fincher acreditou em Brad Pitt. Lançou-o, definitivamente, com Se7en. Confirmou-o, absolutamente, com Fight Club quando o estúdio tinha todas as fichas em cima do nome de Russell Crowe. Aos 36 anos o actor que Hollywood nunca soube encasilhar – e portanto, nunca se incomodou a recompensar – ofereceu o seu papel mais intenso e cru, o papel mais “pittiano” da sua excelente filmografia. Ele não é o esquizofrénico Tyler Durden mas é o espelho em que qualquer esquizofrénico gostaria de ver-se reflectido. É o desafio ao mundo da mesma forma que Norton, o homem que não pode dormir sem entender o sofrimento alheio, é o desafiado que eternamente se desvia do golpe. Entre os dois – porque o filme, apesar do resto, (e nesse resto há a melhor Bonham-Carter desde The Wings of the Dove), é dos dois e só dos dois – o sistema é colocado em cheque. Não se trata da revolta dos necessitados, dos esfomeados, dos pobres. É a revolta dos que já estão a viver o sistema por dentro, que o conhecem à perfeição e que, portanto, entendem as suas falhas, e que têm outro tipo de fome. É a revolta da rejeição, a esquizofrenia de um mundo de corporações, marcas e anuncios.
Fincher explicou-o perfeitamente quando resumiu o filme ao dilema do caçador moderno, aquilo para que geneticamente fomos preparados durante séculos, que hoje se encontra com tudo servido em bandeja e não sabe onde canalizar as suas necessidades mais básicas e primárias. Mas Fight Club vai mais além disso, mais além desse regresso às origens.
Vai, também, ao próprio conflito do eu. Da forma como o Homem se vê a si mesmo no mundo, cercado por esteriótipos e conceitos vendidos e reciclados vezes sem conta. Norton vê em Pitt tudo aquilo que os homens vêm no espelho quando se querem sentir bem. A confiança, a atitude, o corpo, a coragem, o espirito de iniciativa, tudo aquilo que os gregos já enunciavam, há milhares de anos, como a base de qualquer icone humano. O Homem de hoje (e a mulher, até em maior medida) é forçado a olhar para o espelho e negar a realidade, a procurar o escape nessa imagem ficticia e esquizofrénica de rebelião interna. Para se manter em ordem, na linha, na cadeia de montagem, sem reclamar, sem rebelar-se. É nesse aspecto que Fight Club, com todos os seus torsos nus, toda a sua violência, todo o seu sexo, desafia os status quo. O Homem não quer ser só um caçador. Quer ser um Deus.
Naturalmente Fight Club encontrou um grupo de espectadores céptico e incapaz de assimilar todo o processo desconstructivo e lunático que pauta o ritmo do filme. Não poderia ser de outra forma, senão estariamos diante de um processo falhado. Curiosamente foi a sociedade de consumo, através do mercado de dvds, que contribuiu para o estatuto icónico de um filme tão corajoso que só podia ter sido permitido na América pré-11 de Setembro. No fim, se é que há realmente um fim naquele plano delirante e sociopático, a esquizofrenia de Tyler Durden transforma-se também na esquizofrenia do Homem moderno, da sociedade contemporânea. O delirio do espelho partido é apenas o reflexo de uma alma desfeita em mil estilhaços, sem passado e sem futuro e com um presente que lhe vende uma falsa imortalidade.
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