Em 1976 o então jovem promissor Woody Allen estava prestes a transformar-se no autor por excelência da comédia intelectual que começava a ganhar sérios adeptos nos bairros mais progressistas de Nova Iorque. Atrás de si vinha já uma filmografia curiosa, repleta de detalhes que começavam a mostrar um verdadeiro sentido de genialidade. Mas foi nesse Outono que na cabeça de Woody se começou a desenhar a obra que iria, definitivamente, marcar um antes e um depois na sua filmografia: Anhedonia.
Claro que ninguém conhece este curioso filme com titulo de medicamento para patologias mentais (segundo a wikipédia é um termo psicológico para descrever a incapacidade de ter prazer em alegrias quotidianas) porque semanas antes de apresentar o filme ao público, a productora e o cineasta chegaram à conclusão que era preciso encontrar outro chamariz. Optaram pelo nome da personagem feminina protagonizada por Diane Keaton, eixo central dos delirios, já habituais, de um Alvy Allen que se inspirou em Diane, ela Hall na realidade antes que Keaton, para dar corpo e alma à sua obra. O filme acabou por se tornar num icone progressista à americana, venceu os únicos Óscares que Woody tem guardados junto às caixas de sapatos do seu armário, e demonstrou como o poder do marketing pode com tudo, mesmo com a ousadia.
Talvez Allen não imaginasse que 35 anos depois tivesse de passar, uma vez mais, pelo mesmo processo de reconstrução criativa que o levou de uma patologia a outra, numa série esquizofrénica de obras-maestras que o redefiniram como um dos cineastas norte-americanos mais globais da história moderna. Foi preciso viajar à Europa, a sua casa espiritual desde há muito, para voltar a ter de reinventar-se antes de aterrar nas salas de cinema. Ao contrário do pecado original, confuso até para os mais intelectuais do Village por onde pululava, o problema que Woody encontra com o seu novo filme é um reflexo da profunda ignorância cultural que hoje é uma realidade indismentível até na própria Europa. O Velho Continente sempre teve esse preconceito - de certa forma aceite sem resmungar pelos próprios americanos - de que era a biblioteca de Alexandria dos dias modernos, a continente onde a cultura e o conhecimento, como os cogumelos, crescia com uma facilidade espantosa face à barbárie das pradarias do outro lado do Atlântico. Ora essa Europa utópica, que nunca existiu, é agora uma Europa orfã, entre outras coisas, de conhecimento. De cultura. Uma sociedade entregue ao consumo imediato, ao estado social grátis e, sobretudo, à sabedoria de bolso, que é incapaz de analisar e entender um titulo mais complexo do que aquele que venha com parte 1, 2 e três.
Allen não esperava isso dos seus admirados europeus. Quão enganado andava.
O seu próximo filme, uma homenagem felliniana, o seu grande mentor temporal, transformava Roma na sua nova Londres, Barcelona ou Paris.
Uma cidade europeia cosmopolita, repleta de vida social e de icones culturais. Uma cidade a ferver com o amor à arte, à cultura e à sabedoria milenar. Uma cidade que o iria entender como poucos, ele também um simples judeu amante de jazz e nomes pretéritos, mas que, feitas as contas, vive num mundo distante do seu.
The Bop Decameron era o titulo de trabalho do seu projecto de Outono (como Annie Hall o foi), um filme onde dois casais, um americano e outro italiano, deambulam pela Cittá Eterna sem nunca se cruzarem mas vivendo episódios similares. Um filme com um elenco de estrelas, como é hábito, onde Penelope Cruz se transforma em "Mamma Roma" de busto proeminente a la Loren, e em que há até espaço para o mais culto e eclético dos artistas europeus, Roberto Benigni, aliar-se ao seu alter-ego americano nesta história de cineastas cultos e esquizofrénicos.
Mas nem a presença do grande e imenso poeta das esquerdas italianas impediram Allen de se desfazer da sua reminiscência a Bocaccio e o seu mitico Decameron, já adaptado ao cinema por Pasolini nos anos 70. Allen viu o filme e ficou impactado com a crueza da obra do cineasta italiano e quando soube que o seu próximo projecto seria em Itália a ideia de homenagear a Pasolini (mais do que a Bocaccio) ganhou forma. Mas à medida que as filmagens iam decorrendo a productora e o cineasta começaram a descobrir uma dura realidade: ninguém sabia sequer o que Decameron era.
O nivel de ignorância cultural na Itália de Berlusconi é proporcional ao tamanho dos decotes das apresentadores de televisão, aos processos arquivados contra o omnipresente primeiro-ministro e, é preciso dizê-lo, à qualidade do último trabalho do nova-iorquino, o já inesquecível e tão recente Midnigh in Paris. Incrédulo, Woody parecia não acreditar quando as pessoas que contactava na indústria cinematográfica italiana (e os seus distribuidores europeus que lhe permitiram uma segunda juventude) não só desconheciam os Decameron originais (a obra escrita e a obra filmada) como os que sabiam de que se tratava o filme pensavam que Bop seria apenas uma versão actualizada do livro erótico de Bocaccio (algo tão insuspeito num homem que fez da masturbação a sua actividade sexual mais reconhecida) e não um titulo de livre inspiração e homenagem. Onde estava a parte 1, 2 e 3 pareciam pensar?
Como o cinema é uma arte mas também uma indústria que necessita tornar-se rentável a Allen foi colocado o mesmo problema daquele Outono de 76. E acabou por mudar o titulo de trabalho para Nero Fiddled, um nome que invoca outro lado de Roma (mais destructivo podemos supor) e menos proclive a confusões que não seriam reais se a Europa ainda fosse aquilo que nunca foi mas sempre tentou parecer que era. Depois de um filme a transbordar de conhecimento e cultura como foi a sua última aventura parisina, ninguém espera que o cineasta repita a dose em versão italiana, por muito tentado que seja a fazê-lo. O público, mesmo o dele, não aguentaria duas doses consecutivas de entretenimento cultural num mundo onde o entretenimento se tornou o pão e o vinho e o cultural o guardanapo a que se limpa a boca. A ignorância nas salas de aula, nos programas televisivos, nas tertúlias cibernéticas (as outras parecem cada vez mais utopias dentro da utopia) é de tal forma gritante para as gerações de hoje que o estranho é saber de quem e o que é Decameron e não o contrário. O conhecimento tornou-se um peso, um karma social face à estupidificação da imensa maioria, daqueles que trocam os clássicos pelo novo Twilight, daqueles que deram razões a Lucas e Spielberg e à sua cultura de blockbuster e que hoje seriam incapazes de identificar em Annie Hall aquele homem com quem Alvy falava e que, de certa forma, previu tudo isto. Um tal de Marshall McLuhan.
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