Segunda-feira, 31 de Outubro de 2011

Suspicion ou a anti-adaptação made in Hollywood

Em 1940 Alfred Hitchock aterrou nos Estados Unidos e levou para casa o único filme seu a ser galardoado com um Óscar de Melhor Filme da Academia. O sofrivel Rebecca - para os seus padrões de qualidade - não lhe permitiu vencer o prémio que nunca receberia - o Óscar de Melhor Realizador - mas tornou-o popular junto do público norte-americano. Um dos principais motivos foi a fiel adaptação do popular e homónimo romance de Dauphne du Maurier que contribuiu fortemente para o sucesso do filme. No entanto, no ano seguinte, Hitch passaria para a posteridade, pesarosamente, por ser peça fundamental num dos exemplos mais gritantes da anti-adaptação, o falhanço absoluto em transportar a realidade de um notável argumento num triste filme por encomenda.

Johnnie assume que o veneno é para si. E só para si. Que a morte é a única solução para o seu gritante problema de solvência.

Lina, como sempre, perdoa-o e esquece-se rapidamente do intenso e agonizante sofrimento que até há segundos a tinham feito pensar que o seu marido queria matá-la para herdar a sua herança. Juntos abraçam-se e seguem, rumo a uma nova vida.

Este é o final de Suspicion, segundo filme da etapa americana de Alfred Hitchock, e provavelmente aquele que melhor funciona como ovelha na sua filmografia. Apesar do Óscar ganho por Joan Fontaine - a sua actriz em Rebecca com quem não voltaria a trabalhar - o filme foi recebido com um pé atrás por público e critica. A razão? O assassinato do argumento original da obra Before the Fact de Anthony Berkeley.

Durante anos Hitch queixou-se de que foi obrigado pela RKO a alterar o final de um livro tenso e absolutamente apaixonante sobre uma mulher que assiste, impotente, à sua tentativa de assassinato pelo marido, um playboy serial-killer. A premissa inicial da obra literária atraiu de imediato o cineasta para o projecto mas os estúdios que o tinham trazido de Inglaterra impuseram um final diferente do livro. E a missão de Hitchcock era fazer com que o final fosse minimamente credível para o público que tinha lido a obra. A ideia original do cineasta nem era a da versão final mas ninguém discute - nem o próprio realizador - que o filme foi feito do primeiro ao último frame com a sua chancela.

Suspicion termina com esse amor eterno entre Johnnie e Linda mas a obra original revela ao leitor um assassino implacável que mata a mulher por envenenamento depois de ter sido responsável pela morte do seu melhor amigo e do seu sogro e de, pelo caminho, trair a esposa com a melhor amiga desta, a empregada e mais algumas mulheres que lhe vão passando pelas mãos. Na puritana Hollywood do código Hayes essas insinuações eram quase impossíveis e todo o rasto de infidelidade foram substituídos pela traquinice de um adulto infantil interpretado maravilhosamente por Cary Grant.

 

O actor inglês, que começaria aqui a sua história de amor com Hitchock - que duraria quase vinte anos - foi a principal razão para a RKO insistir num final mais dócil.

Grant começava a tornar-se num dos actores mais populares de Hollywood depois do sucesso das suas screwball comedies dos anos 30 e do tenso e apaixonante desempenho em Only Angels Have Wings de Howard Hawks. O realizador inglês conhecia e admirava profundamente Grant e cedo fez questão que ele fosse o parceiro de Fontaine nesta tenebrosa viagem. Mas longe estava ainda o anti-herói hitchockiano que Fonda e Stewart tão bem souberam entender na década seguinte. Este Grant era mais afável, cómico e tranquilo do que qualquer personagem de um filme do mestre do suspense poderia fazer supor e transformá-lo num assassino em série era, para Hollywood, um crime de lesa majestade.

A história foi portanto alterada não sem antes Hitchock ter imaginado um outro final, inspirado no livro original, em que Fontaine bebia o célebre copo de leite - que, confessou Hitch a Truffaut, iluminara com uma lâmpada dentro - mas não sem antes escrever uma carta à mãe em que denunciava o assassinato às mãos do infiel marido. Um final que foi gravado mas que ficou perdido nas prateleiras da RKO. A cena final do filme foi reescrita por Alma Reville, mulher do cineasta, e incluída nos últimos dias da rodagem quando nem sequer os actores principais sabiam como iria acabar o filme. Quando chegou ao circuito de distribuição o sucesso foi relativo e à parte do espantoso trabalho da jovem Fontaine, o filme foi catalogado como uma entretida mas mediana obra de um realizador que em Inglaterra tinha prometido muito. O cineasta - que pela primeira vez co-produziu um filme seu - assumiu o erro e jurou nunca mais voltar a alterar o final de um argumento para agradar aos estúdios.

No ano seguinte realizou Shadow of a Doubt e não abdicou do papel de assassino de Joseph Cotten - apesar da dúvida que deixa nos espectadores mais despistados - e a partir daí partiu sempre da premissa de que o público gosta de ser enganado, mas não demasiado. Os seus McGuffins, enganos irrelevantes dentro da narrativa, fizeram escola e os seus finais passaram a ser aclamados como obras primas do suspense.

 

Para trás ficou a vergonha pessoal de ter traído a sua própria filosofia e um exemplo perfeito da anti-adaptação narrativa, algo que no entanto continuou a ser moeda corrente na indústria norte-americana, desejosa de trocar um bom e sério final a mais uns milhares de dólares na conta bancária. Curiosamente Hitchock, o homem que a critica descobriu mais tarde tornou-se também no mais popular cineasta do cinema norte-americano, aliando como nenhum outro a teimosia do autor ao sucesso de bilheteira. Suspicion, como em muitas coisas, é um filme muito seu. Nesse aspecto em concreto é um anti-hitchcock, um anti-suspense e, sobretudo, uma anti-adaptação que só Fontaine e Grant conseguem transformar num filme imperdível.


Autor Miguel Lourenço Pereira às 14:20
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