Terça-feira, 29 de Novembro de 2011

O Futuro, segundo Scorsese

Chega um momento onde a obra escapa da mão do seu criador e torna-se objecto público, sujeito às mais admiráveis ou tristes interpretações. O autor, seguramente atontado, perde essa conexação com a sua própria criação e segue por um caminho, tantas vezes diametralmente oposto ao da imensa maioria de admiradores ou detractores. Todos temos a sensação de que as obras que mais admiramos são, de certa forma, também nossas. E todos nos arraigamos esse direito de opinar sobre algo que, realmente, é totalmente de outro.

Ler Martin Scorsese é sempre apaixonante. Afinal, tudo o que tenha a ver com Martin Scorsese é tão viciante como uma melodia sem fim de Miles Davis. O grande cineasta norte-americano dos anos 70, o simbolo perfeito da evolução mais cinéfila dos Movie Brats, apresentou ao mundo a sua obra mais radical. E mostrou-se orgulhoso disso.

Com Hugo o nova-iorquino sabia onde se metia? Talvez não, mas Scorsese sempre foi assim, cineasta de riscos e de poucas certezas. Foi assim quando decidiu fazer de Robert De Niro uma estrela quase de musical em New York, New York. Foi assim quando mergulhou no drama tibetano em Kundun. Ou quando decidiu trocar os gangs da Nova Iorque moderna pelos Gangs of New York dos seus primórdios. Scorsese arrisca e nem sempre petisca, mas gosta de experimentar, de provar, de sentir-se vivo. Ao contrário de outros cineastas que, à medida que envelhecem, vão fazendo sempre a mesma obra (às vezes até sempre com os mesmos rostos) de Marty há sempre que esperar o inesperado. Hugo entra nesse ritmo frenético depois de um regresso às origens com Shutter Island.

No universo scorsesiano a presença infantil é profundamente omissa e não é dificil imaginar que o homem que redesenhou o cinema de gangsters tenha tido pouco tempo para seguir uma estela que o seu amigo Steven Spielberg aproveitou sempre muito bem. Mas como Hugo não é, desde já, um filme infantil, mas sim profundamente, humano, a mutação temática é o que menos importa nesta dissertação. O método é outra coisa.

 

O 3D parece ter conquistado o rei de Nova Iorque.

Scorsese confessou-se apaixonado pelo sistema, reconheceu que desejaria filmar todos os projectos futuros em três dimensões e - hellás - chegou mesmo a reconhecer que gostaria de ter provado o sistema em alguns dos seus filmes mais emblemáticos, como Taxi Driver ou The Aviator. Depois de quatro anos em que o 3D tem sido vendido como a grande arme do cinema comercial para recuperar o dinheiro perdido com a pirataria online, o decrépito mercado de DVD e a profunda falta de ideias dos grandes estúdios - com sucessos consideráveis no campo da animação e acção - eis que surge um realizador de prestigio internacional, um autor reconhecido nos quatro cantos do planeta, a elogiar o novo modelo de filmagem como um passo lógico na evolução cinematográfica.

Martin não é tolo, aliás, dos cineastas contemporâneos, provavelmente ele é quem melhor conhece a origem do cinema e os passos que pautaram a sua evolução técnica e metodológica. O 3D para ele é um novo Som, um novo Cinemascope, nada mais. O realizador reconhece que os óculos tridimensionais - como sucedeu na época do drive-in - são um empecilho para os mais conservadores mas ao contrário do pensamento maioritário, o cineasta é capaz de ver algo de prático e útil na utilização das três dimensões em filmes dramáticos, melodramas ou comédias para além do que se vê até agora com um uso e sobreuso do cinema de acção de Hollywood da nova tecnologia, principalmente depois do sucesso de Avatar. Claro que, por muito reputado que seja Scorsese, não deixa de ser uma opinião muito particular. Outro nova-iorquino ilustre, um tal de Woody Allen, já confessou que pensa exactamente o oposto. O que surpreende na afirmação de Marty é o revisionismo da sua própria obra, a tal que todos admiramos e sentimos como nossa. Imaginar Taxi Driver, com a sua vertigem visual nessas noites de insónia de Travis Bickle, em três dimensões é tão provocador que deixa o mais vanguardista sem argumentos para defender-se. E no entanto o remake de uma obra própria, com uso de novas ferramentas, é algo tão comum como o próprio cinema. Entre todos os grandes, Alfred Hitchock, foi o que melhor soube pegar nos seus filmes "ingleses" e reaproveitar ideias, planos e sequências na sua, mais consensual, obra americana. O Cinemascope foi uma arma perfeita para reeditar The Man Who Knew Too Much e quanto de 39 Steps não encontramos no garrido e vertiginoso North by Northwest?

 

Claro que imaginar Sunrise com som e cor (para não falar três dimensões naquele trânsito asfixiante) é algo que não passa pela cabeça de uma maioria habituada a conservar as peças artisticas num reliqário, imutáveis à mudança do tempo. E isso que Abel Gance tentou refazer toda a sua obra quando se encontrou com o som apenas para descobrir que ninguém o iria financiar nesse empreendimento. E que Billy Wilder fez The Apartement em preto e branco e depois não soube contemplar sequer a ideia de Irma la Douce sem o intenso Cinemascope. Ou Ford, do seco preto e branco de Stagecoach ao profundamente emotivo e visual The Searchers, mudando o método mas nunca a essência da sua obra. Não surpreenderá ninguém que o 3D acabe por impor-se porque assim é o mercado, reciclável sempre que faz falta um dólar mais. E Scorsese, como sobrevivente que é, sente já essa necessidade a adaptar-se ao futuro, a essa vertigem voraz de vida que sempre o encantou. Eastwood, pelo contrário, seguramente pensará o oposto e durante algum tempo (muito esperamos) o passado e o futuro conviverão, como sucedeu entre 1926 e 1932, como ocorreu entre finais dos anos 40 e o principio da década de 60. É dificil imaginar um Bickle tridimensional mas para muitos no futuro um futuro personagem da mesma dimensão na galeria scorsesiana criado propositadamente para o 3D será sempre um ser a quem as duas dimensões ficarão, forçosamente, pequenas...


Autor Miguel Lourenço Pereira às 10:41
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8 comentários:
De Nuno Reis a 29 de Novembro de 2011 às 11:31
Fabuloso este texto. Quando eram os outros a falar considerava o 3D uma brincadeira para cobrar mais dinheiro, mas sendo Ele a dizê-lo agora espero muitas grandes obras em 3D. Ainda não vi o filme, mas fiquei contagiado pela dedicação que demonstrou.
Quanto a criar uma personagem mítica para o 3D acho que Spielberg com Jaws e Jurassic Park deu boas garantias de ser o primeiro a lá chegar. Quando? Em menos de uma década seguramente.


De Miguel Lourenço Pereira a 29 de Novembro de 2011 às 11:36
Nuno,

Tu não te desgraces com os exageros, homem ;-) Obrigado.

O problema da indústria americana está sempre na sua dualidade. Passou o mesmo com o som e o cinemascope. Quando eram os estúdios para fazer dinheiro, todos desconfiavam. Depois Lang, Ford, Wellman, Capra com o som e Hitchock, Wilder, Ray e Hawks com o Cinemascope demonstraram que ao mesmo tempo que a indústria faz dinheiro os artistas também têm novas ferramentas de trabalho.

Haverá sempre puristas como foi Chaplin durante muito tempo com o Som ou Cassavetes com a cor, mas seguramente a tendência inevitável será que o 3D se vulgarize nos diversos géneros e em alguns casos abandone a grandiloquência dos Avatars para ser explorado de outra forma, noutras realidades, noutros contextos.

um abraço


De Nuno Reis a 29 de Novembro de 2011 às 13:13
Em Maio Carlos Benpar disse-me que a ganância das produtoras se devia atrasar dez anos: "se o cinema permanecesse mudo mais dez anos...", "se o cinema permanecesse cinzento mais dez anos...". Agora também digo "ai, se o cinema permanecesse em 2D mais dez anos..."
Percebo que a tecnologia precise de algum tempo para se impor e que precise de filmes lucrativos para reinvestir como os pipoca do Cameron, Bay e agora Spielberg e Jackson. Não pode é obrigar todos a mudar de uma vez. Se der para poupar como mudança de película para digital ainda percebo que sejam forçados, mas um 3D será sempre mais caro.

Cada filme é um caso diferente e um cineasta deve ter liberdade para escolher o que quer fazer. Como o Coppola que no "Twixt" usa o preto e branco, a cor e o 3D, mas teve de o fazer sozinho porque não tinha produtores.


De Miguel Lourenço Pereira a 29 de Novembro de 2011 às 14:27
Nuno,

É tudo uma questão de perspectiva porque, da mesma forma que o The Artista aposta no mudo, da mesma forma que há muitos cineastas que continuam a preferir o branco e negro, também continuarão muitos a optar pelo 2D.

O 3D surge como uma ferramenta mais, provavelmente mais útil em determinados filmes, mas que dá armas a directores para explorar novas realidades.

A indústria vai fazer os seus milhões com o Transformers mais depressa que com o Hugo, mas essa inovação permitirá filmes diferentes e isso é sempre positivo por muito que os nossos preconceitos sejam o que forem, como o eram os dos dias do glorioso cinema mudo ou da magia do branco e negro que ainda hoje tanto encanta muitos cinéfilos.

Haverá um momento, quando a indústria esteja financeiramente reforçada, que o preço de fazer filmes em 3D baixe e esteja ao alcance de todos e não só do cinema pipoca. E muitos dos que hoje renegam se calhar vão querer tentar experimentar.

um abraço


De Sam a 29 de Novembro de 2011 às 16:39
Espero que Marty esteja errado no seu "vaticínio".

Nesta questão, sou extremamente conservador e, mesmo com os argumentos apresentados por Scorsese, continuo a não encarar o 3D como um desenvolvimento tecnológico natural na mesma medida em que o som ou o Technicolor o foram.

O 3D já foi experimentado antes nos anos 50 e não resultou (pelos elevados custos que a projecção acarretava). E o renascimento que agora se assiste do formato reveste-se mais como "atracção de feira" do que realmente essencial para um filme (e, subsequentemente, para a Sétima Arte).

Já li que HUGO é um bom filme e que o 3D funciona em torno do seu argumento. Talvez lhe dê uma chance. Também não ficarei incomodado se Scorsese aderir a 100% ao 3D a partir deste momento. Mas espero, aflitivamente, que ele deixe Travis Bickle sossegado na sua "bidimensionalidade"...

Cumps cinéfilos.


De Miguel Lourenço Pereira a 30 de Novembro de 2011 às 08:07
Sam,

Eu não gosto do 3D, não vi o Avatar em 3D nem tive interesse em ver a série de filmes de acção que desde então se querem aproveitar do filão. Não sei também se o que tentaram nos anos 50 - na mesma época que o Cinemascope - é comparável tecnicamente ao que procuram fazer hoje com o aproveitamento massivo do digital sobre a pelicula. Mas imagino que Hollywood, como sempre, tenha capacidade de reciclar-se e sacar mais uns dólares com isso.

O que não me entusiasma nada é a ideia de revisitar algo que a história já imortalizou. Mas como disse no texto isso deve-se sobretudo a que roubamos para nós uma obra que não nos pertence. Se Scorsese quiser fazer um Goodfellas com um Joe Pesci tridimensional, quem sou eu para o impedir. Até terei curiosidade de ver a diferença, por muito que me sinta inclinado a não aprovar o modelo dentro dos meus gostos. Mas se o The Artist recuperou claramente o poder do cinema mudo e se o branco e negro continua a ser tão utilizado por certos autores, certamente que o 3D encontrará o seu espaço no meio.

um abraço


De O Projeccionista a 29 de Novembro de 2011 às 22:23
Por acaso o 3D ainda me faz uma certa confusão, mas acho que muito provavelmente acabará por ser uma evolução natural do Cinema, tal como foram todos os exemplos referidos neste (grande) texto. E continuarão a ser feitos filmes em 2D, tal como continuam a ser feitos filmes a preto e branco nos dias de hoje, alguns bem melhores do que os que usam todas as cores possíveis e imaginárias. O facto de haver mestres como Scorsese a utilizarem e a defenderem esta técnica (Hitchcock também a chegou a utilizar) poderá ajudar alguns a sentirem-se mais atraídos por ela. E é como tudo: às vezes não é a técnica em si que é boa ou má, mas a forma como é utilizada.

Cumprimentos


De Miguel Lourenço Pereira a 30 de Novembro de 2011 às 08:15
Projeccionista,

Estamos de acordo, o 2D não irá desaparecer, não só porque, como apontou o Samuel, é mais barato, mas também porque haverá muitos cineastas que se mantenham fieis ao seu modelo. Como muitos realizaram em preto e branco bem para lá da consolidação do Technicolour.

Scorsese aqui faz o papel de advogado do diabo, anuncia ao mundo que não são só os Cameron e Bay (tão facilmente criticáveis) que acham interessante o sistema. Imagino que não todos os seus filmes futuros sejam em 3D nem o vejo - com tantas ideias novas que tem - a voltar aos seus clássicos, mas tenho a certeza que este não será a sua ultima palavra no assunto.

um abraço


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