Sentado no coração da penumbra, mãos ensanguentadas, lata de cerveja aberta ao lado. Rosto sério. Eterno.
Clint Eastwood filma como Da Vinci pintava. Até ao mais mínimo detalhe. O seu Cinema (sim, Cinema) pertence a um planeta bem distinto ao que estamos habituados a ver, ano após ano. É de outra era. O enquadramento das sequencias, o jogo de espaço. O silencio, sempre o silencio. E aquele pequeno ruído, aqui e ali. Tudo é orquestrado ao mínimo detalhe. Para no final parecer simples, demasiado simples. Os instrumentos vão-se compondo e os sons, inicialmente dispares, ganham um contorno único…e invadem-nos o ouvido, como o canto da sereia. Para prender-nos, do principio ao fim. Isso é Gran Torino. Isso é Clint Eastwood. Isso é Cinema.
É genial a forma como Eastwood consegue fazer do básico, complexo. E, por muito paradoxal que seja, transformar processos desnecessários em algo elementar. Clint simplifica todos os processos cinematográficos na sua incessante busca da harmonia. Reduz a banda sonora ao máximo, mas o que fica, ecoa-nos na mente. Joga com a luz e sombra como nenhum outro cineasta da história – mas os seus trabalhos de fotografia marcam-nos constantemente em toda a sua filmografia, e neste filme, mais ainda. E transforma actores desconhecidos, alguns provavelmente sem grande potencial (e que desaparecem do radar), em monstros em cena. Porquê? Porque lhes dá personagens com substância. Os filmes de Eastwood são marcados por essa clareza no argumento, por essa profundidade de personagens. E Walt Kowalski, esse polaco amargurado e xenófobo, é mais uma dessas pérolas, dessas que já perdemos a conta depois de tantos anos brindados com estas viagens pela mão do grande fotógrafo.
Sim, Clint é mais do que um realizador. É um fotógrafo. De rostos (já o dissemos antes, sempre o diremos, o maior mestre dos grandes planos da última metade de século), de mãos, de vazios. É um fotógrafo de almas. E transporta essa dimensão a níveis insuspeitos. Troça sempre corrosivamente com as grandes instituições (a família é, em Eastwood, sempre alvo de critica, a Igreja nunca escapa, as grandes corporações, tudo…) e centra-se no indivíduo. Walt Kowalski é o indivíduo. Tem todos os defeitos e preconceitos que nos fariam odiá-lo. E fosse outro. Mas é ele. É parte da América que nunca nenhum outro cineasta soube captar. Faz do quotidiano, poesia. E cada vez que rosna a quem o rodeia, inspira ternura…nunca ódio. E assim era Frank Dunn, e assim era Red Garnett, e Bill Munny…e perdemo-nos a conta.
No meio de tudo isto a história, que é o que funciona sempre sobre rodas, quase se torna desnecessária. Eastwood filma temas e aqui eles não faltam. A velhice e o afastamento progressivo dos núcleos familiares modernos está lá. As relações multi-culturais numa América onde vemos tailandeses a gritar a latinos para que voltem para o seu país, onde um irlandês, um italiano e um polaco reivindicam uma bandeira que não é de ninguém…enfim, sem grande barulho, há quem não precise de torres de babel para deambular sobre o multiculturalismo. E, acima de tudo, há, outra vez, a amizade. Essa improvável relação de amizade que sempre está aí…de A Perfect World a Million Dollar Baby…aqui, outra vez, temos esse aperto de mão particular que é também a mensagem final. Nem sempre aqueles que nos estão mais próximos, aqueles que mais queremos são os que nos correm no sangue. Com Clint, nunca é assim…Muitos pensavam que este seria mais um rosto - envelhecido - do Dirty Harry que marcou (tão injustamente) a carreira de actor de Eastwood. Ms Stan não é o implacável detective. É o homem comum de classe média norte-americano, filho de emigrantes que nos seus dias mudou-se para os suburbios e construiu uma familia que, como tantas, se foi desfazendo face à incompreensão geracional que marcou as últimas décadas da sociedade ocidental. É um homem preparado para aguentar tudo, capaz de suportar uma guerra, hábil de mãos, com rápida destreza de mente, mas preso aos seus ideais, imutáveis perante o avançar do tempo. Mas apesar de tudo, é um Ser que reconhece a mudança do tempo e está, inclusivé, disposto a sacrificar-se pelo que antes seria incapaz de mover um dedo. O que mudou? A vida. Kowalski é o exemplo perfeito do envelhecimento fisico e do rejuvenescimento mental. Apesar de todo os preconceitos que o acompanham, Kowalski redescobre a vida no meio da amargura. E está disposto a tudo para preservar esse pequeno campo de pureza, tal vez a mesma ilusão inconfensável que teria ele, desde os dias em que pela primeira vez viu na linha de montagem aquele Gran Torino.
Gran Torino foi anunciado como o filme que despedía o Clint actor. E nem vamos falar de Óscares (até porque conta já com quatro, entre realizador e productor) porque Eastwood é como esses grandes nomes do passado (Capra, Ford, Hawks, Wilder, Hitchock, Renoir,..onde é até insultuoso reduzir tudo a uma estatueta).
A verdade é que Eastwood nunca foi um grande intérprete, mas o seu carisma enche o ecrã, como acontece com poucos actores hoje. Mas ao sair da sala o grande receio que nos entra é o mesmo de sempre. Que este seja o último filme de Clint Eastwood que possamos ver no cinema. O tempo é cruel e os anos vão passando. Há muitos projectos pendentes, mas o receio está lá. Sempre! Quando este fotógrafo de almas deixe a câmara ficará uma certeza. Ter-se-á apagado a última grande luz que nos deu o cinema norte-americano. Com Clint Eastwood termina-se um ciclo. E Gran Torino confirma-o (e quantas vezes já não o pensamos antes?).
Não houve, nos últimos quarenta anos, um cineasta tão grande como Clint. Houve-os (e há-os) bons, muito bons. Mas como este poeta americano, este retratista da Humanidade, nunca mais haverá ninguém. Escrevam-no bem!
Classificação -
Realizador - Clint Eastwood
Elenco - Clint Eastwood, Bee Vang, Christopher Carley
Productora - Warner Bros.
Classificação - m/16