Terça-feira, 29 de Novembro de 2011

O Futuro, segundo Scorsese

Chega um momento onde a obra escapa da mão do seu criador e torna-se objecto público, sujeito às mais admiráveis ou tristes interpretações. O autor, seguramente atontado, perde essa conexação com a sua própria criação e segue por um caminho, tantas vezes diametralmente oposto ao da imensa maioria de admiradores ou detractores. Todos temos a sensação de que as obras que mais admiramos são, de certa forma, também nossas. E todos nos arraigamos esse direito de opinar sobre algo que, realmente, é totalmente de outro.

Ler Martin Scorsese é sempre apaixonante. Afinal, tudo o que tenha a ver com Martin Scorsese é tão viciante como uma melodia sem fim de Miles Davis. O grande cineasta norte-americano dos anos 70, o simbolo perfeito da evolução mais cinéfila dos Movie Brats, apresentou ao mundo a sua obra mais radical. E mostrou-se orgulhoso disso.

Com Hugo o nova-iorquino sabia onde se metia? Talvez não, mas Scorsese sempre foi assim, cineasta de riscos e de poucas certezas. Foi assim quando decidiu fazer de Robert De Niro uma estrela quase de musical em New York, New York. Foi assim quando mergulhou no drama tibetano em Kundun. Ou quando decidiu trocar os gangs da Nova Iorque moderna pelos Gangs of New York dos seus primórdios. Scorsese arrisca e nem sempre petisca, mas gosta de experimentar, de provar, de sentir-se vivo. Ao contrário de outros cineastas que, à medida que envelhecem, vão fazendo sempre a mesma obra (às vezes até sempre com os mesmos rostos) de Marty há sempre que esperar o inesperado. Hugo entra nesse ritmo frenético depois de um regresso às origens com Shutter Island.

No universo scorsesiano a presença infantil é profundamente omissa e não é dificil imaginar que o homem que redesenhou o cinema de gangsters tenha tido pouco tempo para seguir uma estela que o seu amigo Steven Spielberg aproveitou sempre muito bem. Mas como Hugo não é, desde já, um filme infantil, mas sim profundamente, humano, a mutação temática é o que menos importa nesta dissertação. O método é outra coisa.

 

O 3D parece ter conquistado o rei de Nova Iorque.

Scorsese confessou-se apaixonado pelo sistema, reconheceu que desejaria filmar todos os projectos futuros em três dimensões e - hellás - chegou mesmo a reconhecer que gostaria de ter provado o sistema em alguns dos seus filmes mais emblemáticos, como Taxi Driver ou The Aviator. Depois de quatro anos em que o 3D tem sido vendido como a grande arme do cinema comercial para recuperar o dinheiro perdido com a pirataria online, o decrépito mercado de DVD e a profunda falta de ideias dos grandes estúdios - com sucessos consideráveis no campo da animação e acção - eis que surge um realizador de prestigio internacional, um autor reconhecido nos quatro cantos do planeta, a elogiar o novo modelo de filmagem como um passo lógico na evolução cinematográfica.

Martin não é tolo, aliás, dos cineastas contemporâneos, provavelmente ele é quem melhor conhece a origem do cinema e os passos que pautaram a sua evolução técnica e metodológica. O 3D para ele é um novo Som, um novo Cinemascope, nada mais. O realizador reconhece que os óculos tridimensionais - como sucedeu na época do drive-in - são um empecilho para os mais conservadores mas ao contrário do pensamento maioritário, o cineasta é capaz de ver algo de prático e útil na utilização das três dimensões em filmes dramáticos, melodramas ou comédias para além do que se vê até agora com um uso e sobreuso do cinema de acção de Hollywood da nova tecnologia, principalmente depois do sucesso de Avatar. Claro que, por muito reputado que seja Scorsese, não deixa de ser uma opinião muito particular. Outro nova-iorquino ilustre, um tal de Woody Allen, já confessou que pensa exactamente o oposto. O que surpreende na afirmação de Marty é o revisionismo da sua própria obra, a tal que todos admiramos e sentimos como nossa. Imaginar Taxi Driver, com a sua vertigem visual nessas noites de insónia de Travis Bickle, em três dimensões é tão provocador que deixa o mais vanguardista sem argumentos para defender-se. E no entanto o remake de uma obra própria, com uso de novas ferramentas, é algo tão comum como o próprio cinema. Entre todos os grandes, Alfred Hitchock, foi o que melhor soube pegar nos seus filmes "ingleses" e reaproveitar ideias, planos e sequências na sua, mais consensual, obra americana. O Cinemascope foi uma arma perfeita para reeditar The Man Who Knew Too Much e quanto de 39 Steps não encontramos no garrido e vertiginoso North by Northwest?

 

Claro que imaginar Sunrise com som e cor (para não falar três dimensões naquele trânsito asfixiante) é algo que não passa pela cabeça de uma maioria habituada a conservar as peças artisticas num reliqário, imutáveis à mudança do tempo. E isso que Abel Gance tentou refazer toda a sua obra quando se encontrou com o som apenas para descobrir que ninguém o iria financiar nesse empreendimento. E que Billy Wilder fez The Apartement em preto e branco e depois não soube contemplar sequer a ideia de Irma la Douce sem o intenso Cinemascope. Ou Ford, do seco preto e branco de Stagecoach ao profundamente emotivo e visual The Searchers, mudando o método mas nunca a essência da sua obra. Não surpreenderá ninguém que o 3D acabe por impor-se porque assim é o mercado, reciclável sempre que faz falta um dólar mais. E Scorsese, como sobrevivente que é, sente já essa necessidade a adaptar-se ao futuro, a essa vertigem voraz de vida que sempre o encantou. Eastwood, pelo contrário, seguramente pensará o oposto e durante algum tempo (muito esperamos) o passado e o futuro conviverão, como sucedeu entre 1926 e 1932, como ocorreu entre finais dos anos 40 e o principio da década de 60. É dificil imaginar um Bickle tridimensional mas para muitos no futuro um futuro personagem da mesma dimensão na galeria scorsesiana criado propositadamente para o 3D será sempre um ser a quem as duas dimensões ficarão, forçosamente, pequenas...


Autor Miguel Lourenço Pereira às 10:41
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Quarta-feira, 13 de Abril de 2011

Relembrando Lumet, o poeta da América social

Nunca gostou do establishment. O establishment nunca gostou dele. Mas ambos foram forçados a um braço de ferro que durou 50 anos e ajudou a redefinir a estrutura do cinema americano da segunda metade do século passado. Sidney Lumet abriu uma escola e nunca recolheu os louros. Transformou o cinema americano, relançou o conceito de televisão e transformou-se numa bóia de salvação para muitos actores. E nem é preciso olhar para os cinquenta anos de carreira para o comprovar. Todo o Lumet do futuro estava no passado. No inicio. Em 12 Angry Men definiu a pincelada a sua carreira. E nunca saiu da sua linha...

 

 

 

Lumet era um homem que gostava de actores. E de histórias. Com isso bastou-lhe para transformar-se num grande cineasta.

Era um arquitecto do espaço, sabia colocar a camara no local ideal para captar, mais do que uma cena, uma sensação. Não há nada que funcione melhor no cinema lumetiano do que as suas sensações. O desespero de Dog Day Afternoon. A franqueza de The Veredict. A desilusão em Network. A claustrofobia de 12 Angry Men. O seu primeiro filme chegou às salas em 1957. Foi rodado, como seria nele habitual, em tempo recorde e com um elenco broadwayiano. Por onde passou os seus principios, de olho no mundo da televisão. Tinha uma estrela para chamar a audiência, o imenso Henry Fonda. Mas para ele o protagonista não o era se não houvesse algo mais. Profundidade humana em quem o rodeia. Por isso os 12 homens em fúria do titulo tornaram-se muito mais importantes como colectivo, do que o único homem que acreditava na inocência do réu.

A forma como Lumet escolhe esta peça de sucesso não é um acaso. Ele também acreditava num tipo de cinema que começava a estar condenado pela megalomonia que rapidamente destruiria a velha Hollywood. Um cinema seco, honesto e directo. Lee J. Cobb, Ed Begley, Martin Balsam transportavam essa rudeza de um autor que olhou para o teatro como fervorosa admiração. Passou aí muitos dos seus anos e madurou. Quando voltou ao cinema, com a sua natural sinceridade, transformou Katherine Hepburn, essa rainha amaldiçaoda, numa torturada dona de casa em Long Day´s Journey Into Night. Um dos seus melhores e mais esquecidos filmes. A forma como resgatou Fonda e Hepburn, reis dos anos 30, do ocaso tornou-o respeitado por esse nucleo que iria comandar a Nova Hollywood. Os actores respeitavam-no muito por encima dos cineastas da nova vaga. Viam-no com esse afastamento necessário para entender que Lumet seguia a sua própria sombra.

 

A década de 70 marcou esse volte-face emocional do cinema americano e Lumet, sem o mediatismo dos Movie Brats, foi como um profeta na penumbra. Assinou alguns dos mais marcantes - não melhores, marcantes - filmes da década com um cinismo e crueldade a que os americanos estavam pouco habituados. Dog Day Afternoon derrubou, definitivamente, os preconceitos com a homossexualidade graças a um imenso Al Pacino transformado nesse icone gay perdido na sua própria guerra interior. O tom fresco e desesperado do filme transformou-se em algo mais sombrio e deprimente quando Lumet decidiu analisar metodicamente um mundo que conhecia bem, o da televisão, em Network. A forma como conjurou esse triângulo de almas perdidas na luta de audiências, nesse "I mad as hell and I can´t take it anymore" que Peter Finch grita do fundo das entranhas, foi como um soco no estomago para uma geração que começava a perder o norte (Copolla, Scorsese, Cimino e Friedkin caminhavam já para a sua destruição) e que se tinha deixado apanhar nessa escalada moral. E depois, quando parecia que o seu génio tinha passado de moda, quando os actores que o consideravam como um deles o tinham progressivamente abandonado (e a si mesmos também), chegou The Veredict a lembrar os principios. Outro tribunal, outra alma em tortura constante, desta vez consigo mesma, o filme que resgatou Paul Newman de uma década para esquecer (como Holden, como Fonda, como Hepburn...) devolveu esse realismo cruel e esse espirito de cinema social que os Lucas e Spielbergs, que tinham ganho a batalha por Hollywood, tentavam tapar com os seus efeitos especiais. Lumet voltou a ser o que sempre foi, um cineasta marginado (nunca venceu um prémio de prestigio, nunca o reclamou) e com uma profunda mentalidade rooseveltiana acente na luta entre o certo e o errado. A honestidade de Serpico, o desespero do polémico The Pawnbroker (o primeiro filme americano a exibir um seio nu), a crueza de Before the Devil Knows Your Dead, o seu último trabalho, permanecem na memória colectiva. Mas tudo - o sentimento de culpa, o desejo de fazer o bem, a capacidade de persuasão do contrário, o espirito colectivo, o respeito pelos valores americanos e a sua devoção por Nova Iorque - tudo está nesse 12 Angry Men, talvez, e ainda hoje, o seu filme mais certeiro.

 

 

 

Sidney Lumet foi diferente porque nunca procurou seguir a corrente. De certa forma a moda ditou-a ele com a sua aproximação ao modelo capriano e rosselliano que Hollywood tinha trocado pelo fausto e pelos números. Foi um porto de abrigo para actores, argumentistas, criticos e cinéfilos que encontravam sempre nos seus filmes um porto de abrigo. Conheceu o cinema americano a caminho da condenação, mas como em 12 Angry Men conseguiu absolveu-o. E passou os 50 anos seguintes a explicar porquê...


Autor Miguel Lourenço Pereira às 09:28
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Quarta-feira, 23 de Março de 2011

A minha Taylor já morreu há muito tempo...

Quando um grande nome do cinema morre o habitual é recorrer ao obituário escrito há largos anos, preferencialmente omitindo o lado mais negro e obscuro da vida da celebridade em questão. Hoje muitos lembrar-se-ão da grandeza interpretativa de Elizabeth Taylor, talvez a última grande representante da época dourada que viveu Hollywood nos anos 50 e 60. Também esquecerão os seus defeitos, problemas com alcool e drogas, casamentos e divórcios e confusões nos sets. A morte tem esse condão, humaniza todos sem deixar de tratar os que partem como seres quase impolutos. Mas poucos se lembram do que realmente Taylor significou. Para mim foi sempre uma lufada de ar fresco. Hoje partiu a minha actriz favorita, o meu icone sexual por excelência da história do cinema norte-americano. E isso, por muito egoista que pareça, torna-se mais importante do que todas as homenagens que lhe possam fazer.

 

 

 

Liz Taylor era morena numa época onde quase todos se afirmavam como loiras, como estrelas platinadas.

É talvez o único caso real de uma actriz juvenil transformada numa actriz adulta. De verdade pelo menos, que os demais casos palidecem em comparação. Tinha umas curvas monstruosamente seductores, um sex-appeal que começava naqueles olhos penetrantes e acabava na forma redonda das pernas sem fim. Hoje em dia, numa era onde a magreza continua a ser fashion, dificilmente encontraria lugar. Naquele tempo, onde o salto não se tinha dado ainda por completo (mas estava quase, quase), era um espelho de uma época que não voltaria. Taylor cresceu, engordou, perdeu aquele ar de beleza e progressivamente deixou de ser actriz nos filmes para passar a ser actriz no dia a dia. Essa não me interessa. Nem a dos casamentos com productores, actores e jardineiros. Essa não era nunca a minha Taylor e ela não tinha porque o saber. A minha, a que me acompanhava na mente religiosamente mais do que todas as actrizes em carne e osso da minha era, era a Maggie the Cat. A Angela Vickers. A Leslie Benedict. A Catherine Holly. A Gloria Wandrous. A Cleopatra...

Todas elas profundamente femininas. Todas elas mulheres de um imenso caracter, incapazes de se curvar ao macho-alfa dominante de turno (e eram muitos e bons, os Clift, Newman, Hudson, Dean, Brando, Burton e afins). E todas elas assumidamente sexuais. Se há algo que Liz Taylor imortalizará para sempre é o seu forte perfume sexual. Na época pura de Hollywood ela desafiava a norma. Dentro e fora do ecrã. Foi uma menina fisicamente precoce e deu muitas dores de cabeça à MGM que por decoro tinha de a vestir com camisolas largas e soutiens mais ajustados que escondessem os peitos proeminentes que a levaram imediatamente a ser conhecidas nos corredores dos estúdios simplesmente como a miss Tits. Depois do seu primeiro casamento, onde chegou virgem e acabou por ser repetidas vezes abusada pelo próprio marido, começou a entender o peso que o sexo jogava em Hollywood. E utilizou-o como poucas. O que Marilyn Monroe fazia de forma dissimulada, com aquele ar tonto com ensejo a ser considerada como uma figura intelectual, Taylor explorava-o até aos limites. Escolhia papeis polémicos, aceitava o que poucas actrizes admitiam e transformava a vida das mulheres dos actores com quem contracenava num verdadeiro inferno. Essa era a minha Liz.

 

 

 

Mas não só de curvas únicas e olhares perdidos na imensidão do desejo se resumiu a minha relação com Elizabeth Taylor.

Acima de tudo estavam as suas memoráveis sequências, as suas explosões numa especie de over-acting feminina dessa escola chamada Actor´s Studio que sempre preferiu colocar a enfâse nos homens que marcaram uma era, de Brando a Newman. Nenhuma soube explorar tanto esse poder de surpresa que lhe dava "o método". A sua doçura inicial (A Place in the Sun) tornou-se em compaixão terna (The Giant) e acabou em desespero absoluto (Cat on a Hot Thin Roof, Suddenly Last Summer e Who´s Affraid Virginia Wolf). Os seus desempenhos entram, facilmente, na galeria dos mais inesquecíveis da história do cinema e apesar de ter vencido dois Óscares (o primeiro graças a um problema de saúde que quase lhe custou a vida quando tinha apenas 28 anos e já era a estrela maior do star-system), podiam (e deviam) ter sido muitos mais. Em Cleopatra, o filme que a eternizou naquela banheira de leite que escondeu o que mais queria eu ver, cobrou mais do que qualquer outro profissional do mundo do espectáculo até então. E acreditem, valia cada dólar que lhe pagaram. Foi o seu zénite como mulher, como sonho de uma quente noite de Verão, um relembrar do seu fato de banho branco ou da almofada na cama. Como actriz, foi o principio do fim. O casamento com Burton garantiu-lhe mediatismo para o resto da vida mas minou-lhe a saúde (o tabaco, o alcool, a droga aumentaram proporcionalmente com as discussões) e depois de Who´s Affraid Virginia Wolf a fonte secou. Ninguém queria dar trabalho a uma dependente de tudo, do alcool ao sexo, e Hollywood estava mais interessado nas novas belezas finas e secas do que nas voluptuosas estrelas do passado.

A minha Taylor morreu algures em 1963 e depois tornou-se num desses fantasmas que povoam Hollywood densamente. São mais os vivos que os mortos. Como os Brandos ou Hudson da sua geração. Não soube envelhecer, não soube reciclar-se, limitou-se a continuar a ser a diva dos ecrãs num mundo que já não a queria. Com o talento e a beleza escondidos num baú, de onde nunca voltariam a sair, tornou-se numa pária. Hoje voltou a ser uma estrela. Assim é que funciona o star-system.

 

 

 

Charles Bukowski, o mais sexual dos escritores americanos, não gostava de Elizabeth Taylor, a mais sexual das actrizes americanas. Eu nunca gostei muito do provocador Bukowski mas nunca deixei de admirar cada recanto do corpo da mulher que transformou o tabu do sexo no cinema uma década antes do "flower power". Nunca precisou da nudez, hoje tão corrente, para mostrar tudo o que tinha escondido. E nunca deixou que uma personagem a impedisse de brilhar. Transformou o cinema numa arte superior com cada grito, cada esgar, cada olhar. Deu outro sentido ao feminismo com o qual Hollywood nunca soube verdadeiramente ligar. Para o mundo dos obituários pré-escritos e para os que nunca perderam um segundo a perder-se nos seus olhos violeta, Elizabeth Taylor morreu hoje, aos 79 anos, vitima de complicações cardíacas. Mas a minha Liz há muito que só existe num recanto da minha mente, de corpo e alma eterna, perdida entre fatos de banho brancos, miados a escaldar e um convite eterno a perder-me no seu fruto proibido.

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Autor Miguel Lourenço Pereira às 14:04
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Domingo, 21 de Novembro de 2010

O terror, segundo Spielberg

Os cinéfilos conhecem bem a sequência em que Kirk Douglas explica ao seu parceiro Dick Powell o que realmente atrai os espectadores numa sala de cinema quando o tema é o medo. Vincent Minelli falava nesse inimitável The Bad and the Beautiful de um caso concreto (o notável Cat People de Jacques Tourneur), mas a licção ficou. Entrou pela espinha dorsal de Steven Spielberg que antes de se fazer milionários decidiu dar uma licção sobre o medo. Chamou-lhe Duel. Podia ter-lhe chamado Fear. O medo vem sempre do inesperado.

Quem começou a conhecer o mago milionário que revolucionou Hollywood com Jaws, esse primeiro blockbuster sensaborão mas que marcou um antes e um depois da história do cinema americano, certamente não desconfiará que o mesmo autor que trouxe os efeitos especiais para o primeiro plano cinematográfico era capaz de um exercicio tão simples e económico que fosse, ao mesmo tempo, tão devastador. Na mente.

O Spielberg dos extra-terrestres e Indianas Jones formou-se em Los Angeles, na escola onde todos os jovens estudantes se cruzavam com sonhos de imitar os seus mentores europeus que os deslumbravam com projectos arriscados do outro lado do Altântico. Nesse núcleo de movie-brats nenhum atingiu o mesmo impacto do que Spielberg, mas o homem que sonhava em grande, o homem que realizaria um Dia D tão sangrente e tenebroso como o original, tinha já em mãos um projecto pequeno, pessoal e letal.

Com a mais básica das premissas Spielberg demonstrou com pouco esforço onde está a diferença entre o dinheiro e o talento. Mais tarde teria ambos e daí nasceriam as suas obras-primas. Mas sem os dólares que fizeram dele o rei de Hollywood também havia magia no seu olhar agudo. Num filme de auteur, à la Nouvelle Vague, o jovem realizador encarou o espirito solitário da América perdida e atirou-o para a estrada. Um cowboy solitário (dois?) e um duelo com um final inevitável. Afinal, não era no velho oeste que enchia as salas de cinema que o jovem Steve aprendeu de memória a frase "esta cidade é pequena demais para nós os dois". Aquela estrada também.

 

Um homem sai de casa com o seu automóvel e atira-se à auto-estrada. A dado momento cruza umas ágrias palavras com um camionista. E as peças do dominó começam a cair vertiginosamente, uma atrás de outras. O rosto fica invisivel do principio ao fim (quem pode dar cara a Deus e ao Diabo?) porque é o que menos interessa. O rosto a seguir é o do medo. E o medo está no jovem Dennis Weaver, um desses rostos familiares da América dos 70, entre os puzzles da geração Nixon e da era hyppie, que não sabe como sobreviver a esta perseguição sem pingo de piedade. Um retrato claro do clima de medo e violência que o subsconciente americano, envolvido na lama do Vietname, não consegue resolver. David Mann (o Weaver negociante) sabe que acelerar não é suficiente, o grande salto em frente não resolve um problema que pode assombrá-lo a qualquer instante. E depois do medo, vem a raiva. Depois da raiva, chega o ódio. E com o ódio chega a resposta. Um volte-face que inspiraria mais tarde o próprio George Lucas na sua absorção ao universo da Força em Star Wars e que deixa já a dica de que o velho western podia ter os dias contados, mas a essência que pautava os duelos no deserto continuaria, noutros cenários, com outros personagens mas com a mesma essência.

The Duel, essa obra-prima inicial de um homem que transformou o cinema e acabou por transformar-se a si mesmo na figura do productor moderno de blockbuster (ocasionalmente estão ainda os seus destelhos de génio), nunca chegou à salas de cinema americanas e passou pela televisão quase sem graça. Na Europa, pelo contrário, entrou directamente para os tops do ano com elogios à direita e esquerda, de público e autores consagrados. Talvez por isso o crédito dado a Spielberg (o mesmo passaria com o Lucas de THX e American Grafitti) que outros movie-brats, mais comerciais, nunca chegaram a ter fora dos States.

 

O medo ao desconhecido é a verdadeira essência animalesca do homem. Sem rosto a quem culpar, sem motivos para raciocionar, o medo atinge o mais profundo subsconsciente do Homem. Naquela luta desigual - não é o medo sempre producto de uma luta desigual? - o Homem tem de aprender a catalisar as suas emoções para sobreviver. E para viver há que matar. Primário na essência, medular no estructura, básico na genialidade. Com tanta simplicidade se formou um génio da complexidade, com tanta razão se entendeu o poder de uma camara e um rosto desesperado.  


Autor Miguel Lourenço Pereira às 10:11
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Quarta-feira, 13 de Outubro de 2010

A nudez do desejo

Na época em que os códigos de censura se apertavam em Hollywood a resposta europeia surgiu de forma frontal e chocante para os padrões da época. Dois cineastas suecos abriram as portas da revolução sexual no cinema com dois filmes com fortes paralelismos que não tiveram medo em despir o desejo. Ver passou a ser melhor do que simplesmente imaginar e o corpo tornou-se numa entidade mais, veículo nuclear de uma narrativa onde o sexo define a moral.

Espaçados por apenas dois anos, os corpos nus de Harriet Anderson e Ulla Jacobsson tornaram-se no ex-libris do desejo sexual consumado um pouco por todo o Mundo. Condenados por Hollywood - e pela cinematografia mundial em geral - a planos de decotes generosos mas controlados, os espectadores eram forçados a conter dentro a libido que sentiam pelos actores e actrizes que desfilavam pelos milhares de filmes produzidos ao ano. As costas nuas de Marlon Brando, nesse mesmo ano, em Streetcar Named Desire davam a entender que algo mudava. Mas seriam precisos quinze anos mais para Hollywood permitir oficialmente a visão dos primeiros seios nus (The Pawnbroker, depois de no ano anterior Jayne Mansfield ter desafiado a censura com a sua polémica mama nua em Promises! Promises!) e alguns anos mais para ver os primeiros sexos a descoberto (Blow Up abriu a corrida em Inglaterra, seguindo os passos de Peeping Tom de Michael Powell), remontando à longinqua imagem de Hedy Lammar em Extasis, inevitavelmente filmada no Velho Continente. Se Hollywood continuava a fechar-se sobre o seu código Hayes, a Europa começava a despertar para uma nova realidade. Não tardaria nada para que Brigitte Bardott surgisse como Deus queria que se tivesse criado todas as mulheres quando o cineasta sueco Arne Mattson decidiu quebrar os tabus e filmar a polémica novela de Per Olof Ekstrom, Sommardansen. O livro centrava-se na relação entre um jovem casal adolescente que se apaixona durante as férias do Verão numa quinta sueca perdida no meio da Natureza. O filme era arrojado menos pela temática e mais pela forma. Se a história de amor era um conjunto de sofrivéis clichés, já a naturalidade com que Mattson filmava a natureza sueca encantava pela sua simplicidade. Mas era o desejo, tema central do livro que ganha direito a destaque no próprio filme, que dá sentido à obra. E à sua popularidade. O amor entre Goran, o jovem estudante universitário, e Kerstin, a rapariga do campo, é um amor sexual, explicito e repleto de desejo. Não é nem puro e virginal, nem contido e castrador. A cena em que os jovens consumam o desejo que sentem é um hino à ousadia. A nudez de Jacobsson, uma das mais belas actrizes suecas da década dos 50, é desarmante pela sua simplicidade. Naturalidade. Inevitabilidade. São apenas dois seios, peitos, mamas...mas são também um choque no conflito cultural que rege a sétima arte de então.

O filme acabou por ver premiada a sua ousadia vencendo o Urso de Ouro em Berlim e arranhando a Palma de Ouro em Cannes. A Europa premiava o autor pela sua coragem, os Estados Unidos entretanto mutilavam o filme a ponto de o estrearem com quatro anos de atraso quando já nada havia a fazer. E em salas especificas, em centros urbanos, para não ferir susceptibilidades. Por essa altura já ecoava o sucesso de outro descarado cineasta, um homem que faria escola pela sua simplicidade de processos, e que dois anos depois de One Summer of Happiness/Hon dansade en sommar se arriscava a ir mais longe: Ingmar Bergman.

O então jovem realizador, filho de uma escola que tinha bebido em Dreyer e na filmografia sueca dos anos 10 e 20 a sua principal inspiração (Sjostrom), já tinha dado timidamente os seus primeiros passos. Mas foi o sucesso de Mattson que lhe deu vontade de transgredir ainda mais. Adaptou então outra novela maldita, Sommaren med Monika de Per Anders Fogelström. Um filme sobre uma rapariga da cidade que procura a liberdade a todo o custo. Uma corrida ansiosa contra o tempo onde Monica é incapaz de olhar a fins para atingir meios. O amor, o sexo, a maternidade são apenas etapas na sua eterna ânsia de viver. Filme cruel sobre o final de uma adolescência irresponsável, Summaren med Monika (Mónica e o Desejo numa tradução feliz, das poucas, da lingua portuguesa) foi um modesto sucesso critico na sua época mas acentou as bases do culto que começou a rodear a figura de Bergman. Mas foi a sua estrela, a jovem actriz com o qual mantinha uma tórrida relação (apesar de ela ter apenas 19 anos contra os 35 dele), que se tornou no icone do filme. Harriet Anderson, então praticamente desconhecida, deu corpo, voz e forma ao desejo masculino. O seu corpo nu, banhando-se nas rochas, expõe pela primeira vez uma actriz nua de preconceitos e de vida, despojada diante de uma camara sem piedade. Uma nudez que se prolonga em mais do que uma cena e que ajudou a tornar Anderson na grande estrela sexual do cinema europeu até à errupção orgásmica de B.B., producto de Vadim, outro realizador-amante. A libertinagem dos planos dos decotes soltos de Monica, os seus banhos de sol nas rochas e no pequeno barco que ela e Harry, o eterno apaixonado, transformam na sua casa. Se o filme é pouco amável com Mónica, é fundamental para resumir a expressão do desejo na filmografia de um realizador que será, posteriormente, muito mais contido.

A Suécia, país cauto à vez que liberal, abriu assim as portas a um cinema despojado de tudo menos de desejo. A forma e o conteudo seguiam as mesmas pautas e deixavam de lado os espartilhos sociais. Os corpos nus tornaram-se mais do que simbolos da libertação sexual da mulher, foram verdadeiros faróis de inspiração para os cineastas que se seguiriam na corrida contra o obscurantismo visual que negou o realismo e ofereceu uma visão distorcida e contida do desejo carnal humano. O sucesso sem fronteiras de Monica e Kerstin foi também o sucesso da mulher no cinema. O sucesso do corpo. Pela primeira vez o desejo pode sentir-se como gosta, nu!


Autor Miguel Lourenço Pereira às 09:33
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Segunda-feira, 11 de Outubro de 2010

A mulher do quadro

Apaixonei-me pela primeira vez por Gene Tierney aos 12 anos. Apaixonar-me-ia outras vezes. Mas aquela vez, reflectida num quadro imponente que deixa Dana Andrews estatelado pelo amor a uma mulher morta será sempre algo inesquecível. Não teve uma grande carreira, nem mesmo uma grande vida. Mas o olhar misterioso de uma das actrizes mais misteriosas dos anos 40 continua a ecoar em cada retrato gigante com que me cruzo...

Lembro-me perfeitamente da primeira vez que vi Laura. Como Dana Andrews, o inspector McPherson, vi-a num quadro. Morta. Para todos, menos para ela.

Nesse maravilhoso filme noir assinado por Otto Preminger o fácil é apaixonar-se pela frágil Tierney. O dificil é entender a expressão ténue que a acompanha, qual vulto inevitável de um fim macabro e sem retorno. Descobri mais tarde que outros se tinham apaixonado por Gene Tierney antes. Mas aquele momento era o meu. E sê-lo-ia sempre. Também eu me tinha apaixonado por uma mulher morta. Há cinco anos na vida real. 71 depois de ter nascido. 45 depois do inesquecível filme que a catapultou como uma das máximas estrelas da Hollywood do pós-guerra. A sua beleza etérea colocava-a ao lado de Ingrid Bergman, Barbara Stanwyck e Jennifer Jones no topo da preferência do público masculino. Até as mulheres tinham uma natural inveja da jovem do Bronx de 24 anos. Tierney representava - ainda representa - os traços da mulher fatal com ar inocente da década por excelência do cinema noir. Dez anos antes teria sido dispensada por ser demasiado intensa. Dez anos depois perderia importância porque lhe faltavam as curvas e sexualidade exigida à nova vaga. O seu tempo era aquele. Sem tirar nem por.

A obsessão de Dana Andrews era inevitável da mesma forma que Anatole Litvak, o cineasta checo que a descobriu como apenas 17 anos, foi incapaz de resistir ao olhar da rapariguinha nova-iorquina de férias na costa dourada. Foi o primeiro flirt com Hollywood. A tentação foi superada e a jovem ingressou no mundo da Broadway com o inusitado apoio familiar.

 

A revista Variety classificou-a como a mais bela actriz do teatro norte-americano na sua primeira performance.

O seu pai, um banqueiro endinheirado, aceitou as súplicas da filha e decidiu financiar a sua carreira. Menina do papá, como sempre fora, Tierney resistiu à sedução de Howard Hughes, que ficou obcecado pela sua beleza, e perdeu o peso exigido pela Fox (estavamos numa época de actrizes com poucas curvas) para contracenar com uma jovem estrela em ascensão, Henry Fonda. O filme foi The Return of Frank James, um western de Fritz Lang que passou relativamente desapercebido, mais até do que Tobacco Road e Belle Star, as suas duas seguintes incursões. Só em 1943, já com o espirito da guerra a desvanecer-se, que surgiu o lado mais explosivo e apaixonante da jovem actriz. O mundo apaixonou-se por ela - eu não - com Heaven Can Wait. Ao lado de Don Ameche sofreu as agruras de ser dirigida por Ernst Lubitsch, outro que se apaixonou por ela perdidamente - como o Van Peebles da história - e que acabou por se tornar num dos seus mais fieis amigos e seguidores. O sucesso comercial do filme do célebre cineasta germânico abriu-lhe as portas de Laura e com ele chegou a eternidade da mulher no quadro.

O seu ar de femme fatale hipnotizou alguns mas convenceu poucos. Tierney parecia demasiado débil para ter a capacidade de matar como evidenciava Barbara Stanwyck no electrizante Double Indemnity. Para esses chegou a resposta no tenso melodrama Leave Her to Heaven onde a actriz se metamorfoseava totalmente para encarnar numa mulher ciumenta e obsessiva capaz de matar para conseguir o amor incondicional do homem com quem casava. O filme foi um sucesso (o maior da sua carreira e da Fox em toda a década de 40) e valeu-lhe a primeira nomeação ao Óscar. Perdeu, mas ganhou o respeito de todos. Era mais do que uma cara bonita.

O resto da década passou-a entre pastilhas para dormir, relações tormentosas (teve um caso com Spencer Tracy quando este era casado e por sua vez vivia com a sua amante de facto, Kate Hepburn e outro com JF Kennedy que a abandonou por Jacqueline Onassis por exigência do pai) e desempenhos excelentes como o de Razor´s Edge (como não apaixonar-se aí), The Ghost and Mrs Muir (até um fantasma como Rex Harrison é incapaz de lhe resistir) e Night and Day. No entanto estava, sem o saber, mais perto do fim do que do principio. A erupção da escola Actor´s Studio em Hollywood trouxe outro modelo de actores à ribalta e os productores preferiam as mais carnentas e sexualmente tensas actrizes da escola do método do que a fria e serena Tierney e a sua geração.

Os problemas mentais que irromperam com o nascimento da filha, surda, cega e com problemas mentais devido ao facto de Tierney ter contraído rubeola durante a gravidez pelo contacto com uma fã doente, começaram a deixar mossa. Foi substituida por Grace Kelly em Mogambo. Foi o passar de um testemunho para uma actriz que lhe chegou a parecer em muitos aspectos. Tierney esteve perto de casar com um principe, Aly Khan, mas não superou as provas de protocolo. Kelly não teria esse problema para ser princesa do Mónaco. Ao lado de Bogart em The Left Hand of Good viveu o seu último esplendor. Por essa altura já sofria choques eléctricos com regularidade e o corpo, que durante a guerra tinha servido de modelo pin-up para os G.I., começava a degradar-se rapidamente. Era outra Gene. Não aquela que tinha feito Darryl Zanuck proclamar aos sete ventos que era a mais bela mulher da história do cinema. Nem aquela do quadro, a da minha primeira paixão. Uma paixão de juventude, uma paixão macábra, uma paixão inevitável. Assim era a mulher do quadro.


Autor Miguel Lourenço Pereira às 09:21
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Sexta-feira, 8 de Outubro de 2010

The Duke

Durante anos foi o icone perfeito do cinema clássico norte-americano. E também o actor mais desprezado pela critica e mais adorado pelo público. Um contra-senso tipicamente hollywoodesco que ajudou a criar uma aura de mito à volta do homem que confessou que arrastava a voz em cada deixa para garantir que não lhe cortavam a cena demasiado cedo. Afinal, Marion Morrison precisou de 80 filmes até se tornar em John Wayne.

Cavalgava com a mesma destreza com que se desviava dos adversários nos relvados onde se converteu uma estrela do futebol americano do final dos anos 20. Nunca gostou de usar duplos porque os seus dias de futebolista tinham-lhe ensinado a aguentar as quedas. Nessa altura Marion Mitchell já gostava que lhe chamassem Duke em vez de Marion. A razão? Era o nome do seu cão de estimação, um enorme terrier que o seguia para todos os lados. Especialmente para as sessões que ia ver regularmente ao cinema mais perto da casa dos seus pais, onde seguia apaixonado as aventuras de Tom Mix. O cowboy por excelência do cinema mudo tornou-se no idolo do jovem universitário. Quando uma lesão o afastou da equipa, a Universidade livrou-se dele. Não havia dinheiro para tudo e o cinema surgiu, por necessidade, como a mais óbvia das escolhas. Aí conheceu Mix que simpatizou com o jovem de 20 anos e deu-lhe um trabalho a carregar adereços. Um dia tropeçou com uma caixa e provocou a ira do realizador do estúdio. Depois da explosão do momento, os dois falaram e tornaram-se bons amigos. O realizador chamava-se John Ford. A dupla tornar-se-ia parte de uma longa lenda que moldou o formato do western, o género americano que Ford desenhou e produziu com exactidão e que Wayne, com os seus gestos claros e voz segura, deu uma dimensão bigger than life. Wayne sabia que a vida em Hollywood era dificil. Sempre foi um trabalhador nato. Fazia sete filmes ao ano, muitos deles com um salário miserável. Mas gostava de trabalhar. Foi Raoul Walsh, outro dos gigantes com quem pontualmente trabalhou (tal como com Howard Hawks, que fez dele o paradigma perfeito do "camarada" nas suas longas gestas humanas que arrancaram em Red River e finalizaram em Rio Lobo), quem decidiu mudar-lhe o nome. Duke parecia-lhe de rafeiro, Wayne de estrela. Decidiu-se entre John e Anthony para nome. Ganhou o primeiro, ganhou o cinema. Marion nem teve voto na matéria. Já não pertencia a si mesmo.
 
Quando na noite de 7 de Abril de 1970 subiu ao palco do Dorothy Chandler Pavillion para recolher o seu Óscar, muito tinha passado daqueles dias de frenéticas filmagens de duas semanas. Velho, cansado e com um cancro que o minava, lentamente por dentro, John Wayne era outro. Já não pertencia a si mesmo. Fazia parte de uma herança mitologica que definia a época dourada do cinema de um país que levava nas entranhas homens como ele. Wayne surgiu como o arquétipo americano, o do sonho, o da ilusão, o dos mitos. Qual Ulisses viajou até poder chegar a casa em The Searchers. Bateram-lhe com a porta, a odisseia americana não tinha lugar para ele. Foi Aquiles, Teseu, Perseu e Hércules. Tudo para um Homero de pala no olho e espirito atento, capaz de captar o uivar de um país ainda em tenra idade. O John Wayne que subiu ao palco para recolher o seu Óscar era a instituição. O prémio, entregue por um papel menor em True Grit, homenageava o homem que então despertava a ira dos criticos e do público, que viam nele a pesadez de uma instituição prestes a ser abolida. No ano em que Hollywood se rendia à Nova Escola, a Midnight Cowboy, o eterno pistoleiro do oeste, o eterno capitão do regimento, tinha o seu prémio. Era o final de uma era. Wayne foi, em si, toda uma era.


Duke precisou de 80 filmes para ser quem foi naquela noite.

Quando John Ford, finalmente, depois de dez anos de amizade, decidiu escalar Wayne como protagonista de um dos seus filmes, parecia fazê-lo menos por convicção e mais por necessidade. E no entanto, Ringo Kid, o forajido que salva a caravana perdida em Stagecoach, era o mais perfeito dos anti-heróis americanos. Oitenta filmes depois de arrancar, o icone começava a moldar-se. O duro de bom coração, de voz arrastada e timbre rouco, rápido com a pistola e com o chapéu, ganhava outra dimensão. Ao contrário de Mix, Autry, Cooper, Fonda ou outros heróis do velho oeste, o sucesso de Wayne nos westerns define-se pela sua própria capacidade em metamorfosear-se e moldar-se a cada etapa da viagem. Foi jovem quando velho em The Man Who Shot Liberty Valance e velho enquanto novo, sentado ao lado da campa da sua eterna amada, no inesquecível She Whore A Yellow Ribbon. Deu outro sentido à mitologia da cavalaria yankee com Forte Apache, The Horse Soldiers e Rio Grande desprezou-a como sulista renegado no épico americano por excelência, The Searchers. Com Ford fez mais de 20 filmes, onde se incluem os seus únicos riscos para lá do Velho Oeste e dos palcos de guerra. Foi o irlandês apaixonado em The Quiet Man e o militar perfeito em The Wings of Eagles, ambos com a deslumbrante ruiva Maureen O´Hara, talvez a sua mais perfeita co-star (e teve muitas) e definitivamente a sua melhor amiga. Homem de valores raros, rejeitou projectos milionários por convições politicas e por despeito, lembrando-se de como era tratado por alguns estúdios quando Marion ainda não era John. Por isso tinha o respeito de todos e o amor de poucos. Algo com que viveu até ao fim. Tentado a candidatar-se a presidente, respondeu que os americanos nunca votariam num actor para um cargo tão respeitável por muito popular que fosse. Não viveu para ver o seu amigo Ronald Reagan, um dos elementos que ajudou a promover dentro da estrutura republicana, onde tinha uma imensa influência, contrariar a sua previsão.

Naquela noite dourada Wayne pensou que seria o fim. Não o foi. A vida deu-lhe tempo para arriscar algo mais e em lugar de parar, Wayne tornou-se mais activo ainda. A sua eterna despedida foi duplamente simbólica. Em The Shootist, arriscadamente um dos seus mais belos papeis, contracenou com os velhos amigos James Stewart e Lauren Bacall. E com a própria vida. Despediu-se do cinema como do Mundo, de cabeça alta, esporas nos pés e um leve sorriso no canto direito da boca. Sabia que nunca morreria, que a vida já o tinha tornado eterno. Marion Mitchell faleceu a 11 de Junho de 1979. John Wayne viverá para sempre. Morrerá com o Cinema, e "That'll be the day!"..."


Autor Miguel Lourenço Pereira às 11:14
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Terça-feira, 5 de Outubro de 2010

Fato de banho branco paixão...

O Cinema sobrevive ao desgaste do tempo porque se baseia em sentimentos. Os criticos e especialistas podem debater a metafísica da misé en scene, a subjectividade do suposto e a objectividade do relativo. Mas sem a garra de um sentimento por detrás, um Filme é um ente vazio. E todos os que nele habitam. Amor, repulso, admiração, ódio, desprezo, indiferença, inspiração, paixão...

 

 

Poucos seres entenderam o poder da paixão no cinema como Tennesse Williams. Ele que não vivia para o cinema, mas que o entendia totalmente. As suas obras teatrais marcaram a cena cinematográfico durante quase vinte anos com um vigor indecoroso para a época. E Williams percebia de paixão. Em forma de fato de banho branco...cor paixão. Um fato de banho nu, pelo menos tão nu quanto o código Hayes à época permitia. A transparência dos sentidos vale mais que a transparência do corpo e não é(era) preciso ver os pelos púbicos e os mamilos claros para ver toda a nudez ali reflectida. Subitamente, no Verão passado, Catherine Holly sentiu-se nua. Naquele fato de banho branco. E todo o Mundo o sentiu também. Viu-a despojada da inocência, por muito branca que estivesse ao sair daquelas águas. Catherine Holly já não era um ser virginal. Era um pedaço de carne, cobiçado a peso de ouro. E Williams sabia-o. Mais do que ninguém, Williams sabia a quanto se quotizava a carne. E nenhuma valia mais que a de Elizabeth Taylor. A mulher que apaixonou o cinema e fez os demais apaixonarem-se por aquele fato de banho. Branco claro, tudo aquilo que ela não era.

 

Se o cinema é paixão, para os homens as actrizes têm sempre um lugar especial. Taylor encontrou-o desde jovem em que já lhe via maneiras de estrela nas correrias que fazia ao lado de Lassie. Durante dez anos Elizabeth Taylor vendeu inocência. A mesma inocência juvenil que fez dela a noiva filha do pai Spencer Tracy e a perdição de Montgomery Clift em A Place in the Sun. Uma inocência virginal que perdeu sentido quando a sua vida se cruzou com o mercador Williams. Feito à sua medida, Maggie the Cat rasgou o passado da pequena Liz e moldou as formas da mulher Taylor. Os vestidos feitos à medida para evidenciar o busto moreno da recente mãe que competia com a horda de loiras que invadia Hollywood e a sexualidade transbordante de cada súplica ao homossexual Rick eram talvez demais para a época. Taylor era demais para a época onde o insinuar era o máximo que se podia fazer. Sem mostrar nada, sem dizer nada, os olhos violeta e a boca carnenta faziam muito mais do que insinuar. A virgem tornou-se a predadora. No ecrã e fora dele. Suddenly, Last Summer significou a terceira nomeação consecutiva ao Óscar. O establishment estava tão apaixonado por ela como o público em geral e os homens em particular. Tanto que a comoção pública que a amparou depois da morte do seu promissor marido, o productor Michael Todd, e da sua quase fatal pneumonia fizeram o que o seu talento não logrou. Em 1960 bateu a sua grande amiga Shirley McLaine pelo menor Butterfield 8. Estava consagrada a estrela, a mulher e a actriz. Não havia dúvidas, Liz Taylor era então “o” cinema.

 

Feito à sua medida Cleopatra quebrou os três anos de hiato em que Taylor se decidiu a converter numa estrela.

A auto-destruição (e morte) de Marilyn Monroe faziam dela o icone sexual de Hollywood por definitivo. Era o triunfo das morenas de curvas recheadas. Da viuva negra, capaz de dormir com qualquer actor para não se deitar só, mesmo que fosse o marido de uma das suas melhores amigas. Mas também a dor da amizade de uma actriz que era também um dos caracteres mais fortes do devasso mundo do cinema de então. Virgem até ao matrimónio (segundo ela), salvou-se de se envolver com os actores com quem contracenou porque ou eram homossexuais (Monty Clift, James Dean, Rock Hudson, todos amigos dedicados que encontraram nela o refúgio à sua condição) ou já tinham “dona” (lá se diz como Woodward tinha Newman sobre olho nas rodagens de Cat...). Até que chegou um galês conhecido pelos seus modos shakesperianos e a sua adicção ao alcool e ao amor próprio. Com Richard Burton misturou-se o cocktail fatal. Cleopatra tornou-se na misturadora da bebida que electrizou o Mundo. Odiaram-se e amaram-se automaticamente e desde o primeiro suspiro. Os gritos de êxtase de ambos eram ouvidos por toda a equipa de filmagem, noite após noite. Filmagens atrasadas, estreia megalómana, Liz perfeita. O seu banho, tão nu e transparante como o fato de banho branco, rompeu corações. O seu desfez-se pouco depois. Com a sua meteórica carreira. Durante três anos dedicou-se a destroçar a figura que fizera dela a moderna Afrodite. Alcool, drogas e paixão num longo suicídio que culminou no duplo homicidio matrimonial que é o imenso Who´s Affraid Virgina Wolf? Não se fazem hoje papéis assim para mulheres. Nunca mais se fez um papel assim para Liz. Mais do que os Óscares, o filme significou o fim. Do casamento (que acabou e recomeçou aos soluços), da carreira, da figura.

Durante os dez anos seguintes a actriz perdeu significado. As curvas foram dando passo precoce à evolução do tempo e as rugas e operações plásticas remendadas destroçaram a outrara grande diva que no entanto nunca perdeu o apetite ninfómano que a celebrizou. Taylor abandonou e abandonou-se, perdida talvez hoje ainda em horas de solidão a olhar-se ao espelho à espera de se ver reflectida, nua, despojada de tudo, naquele fato de banho branco que a fez eterna...


Autor Miguel Lourenço Pereira às 09:03
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